sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Assistência religiosa no sistema prisional: opção ou obrigação?

Por DiAfonso [editoria-geral do Terra Brasilis]

Este artigo tem sua origem em outras duas publicações feitas aqui no Terra Brasilis [1]. A primeira diz respeito à denúncia de que, no Centro de Remanejamento do Sistema Prisional São Cristóvão, em Belo Horizonte [MG], seu diretor estaria obrigando presos a assistirem a uma programação televisiva de cunho religioso, 24h por dia. A segunda,  um comentário à primeira publicação transformado em direito de resposta, traz o posicionamento do diretor sobre suas ações. 

A editoria-geral prometeu se manifestar sobre o comentário feito pelo diretor Luís Fernando de Sousa e assim o faz nas linhas que se seguem. 


 


Desrespeito ao Art. 12 da Lei de Execução Penal

Em relação ao sistema carcerário nacional e aos ambientes nos quais os presos passarão a coexistir [dê-se o nome que se queira dar: presídio, penitenciária, distrito prisional, delegacia etc], vale ressaltar a pública e notória existência de pontos nada abonadores:  superlotação, desrespeito aos direitos humanos, falta de assistência jurídica que assegure ao preso um julgamento justo, corrupção de agentes públicos, alto custo para manutenção do[a] detento[a] etc.

A não efetiva observância da Lei de Execução Penal [2] degrada a condição do ser humano aprisionado por delito cometido contra a sociedade. Se delito houve, respeitado o rito processual, que o[a] detento[a] seja penalizado[a] na forma da Lei. Nunca é demais dizer que alguns presos já deveriam estar em liberdade, quer por terem cumprido pena em regime fechado sem a devida assistência judicial, quer por não terem cometido crime algum. Este último cenário, convenhamos, é gravíssimo e não é surreal!

No que concerne, especialmente, ao Capítulo II da supracitada Lei, cabe indagar se o Estado ["A assistência ao preso e internado é dever do Estado"  - Art. 10] a cumpre. Não precisamos ir muito longe para constatar que o que lá está disposto não se aplica em muitos casos. Reportemo-nos a alguns pontos desse Capítulo:


A SEÇÃO I trata das Disposições Gerais e define em seu Art. 11 que a assistência envolverá os aspectos materiais, de saúde, jurídicos, educacionais, sociais e religiosos


Não é preciso ser jurista ou advogado para perceber que o cenário é bastante  diverso daquele preconizado pela Lei, mesmo que essa percepção resulte de uma leiga análise.


Já na SEÇÃO II [Da Assistência Material], constata-se um distanciamento entre providenciar alimentação, vestuário e instalações higiênicas [Art. 12] e a mais dura realidade de quem se vê aprisionado em celas superlotadas. Como a higiene sobrevive em ambiente no qual suor e saliva circulam "livremente"?

Alguém acredita em que o aprisionado é assistido de acordo com o que está escrito no Art. 14 [SEÇÃO III - Da Assistência à Saúde]? Isto é, o preso tem assistência médica, farmacêutica e odontológica adequada? Basta um rápido olhar para os cidadãos e cidadãs que necessitam de atendimento na rede pública de saúde para assegurar que o referido artigo é mera peça legal.

O Art. 16 [SEÇÃO IV - Da Assistência Jurídica] define que as Unidades da Federação devem promover "[...] serviços de assistência jurídica, integral e gratuita, pela Defensoria Pública, dentro e fora dos estabelecimentos penais.". Há defensores públicos em número suficiente para atendimento à população carcerária que não dispõe de recursos para constituir advogados que a defenda?  Mais uma peça legal longe de real aplicabilidade.

A leitura da SEÇÃO V, que trata da Assistência Educacional, e de todos os seus artigos nos leva à constatação de que a precariedade, na aplicação da Lei, é gritante.  A instrução escolar e a formação profissional do[a] detento[a] são promovidas [Art. 17]? Bibliotecas [conforme o disposto no Art. 21]?... Nem pensar!

Deixando de lado a SEÇÃO VI [Da Assistência Social], passamos a nos deter nos artigos que tratam da assistência religiosa. 

A SEÇÃO VII [Da Assistência Religiosa] é, especialmente, importante neste artigo por se reportar ao direito de resposta concedido ao diretor prisional Luís Fernando de Souza, decorrente de uma matéria publicada anteriormente no Terra Brasilis. Eis o que diz a SEÇÃO:
Art. 24. A assistência religiosa, com liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo-se-lhes a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa.
§1º No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos religiosos.

§ 2º Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa.
  
As razões apresentadas pelo diretor Luís Fernando, tais como estão, são louváveis até certo ponto. A questão não é o desejo dele de ressocializar e transformar o aprisionado para uma futura reintegração na sociedade, mas como isso está se dando, isto é, o fato de fazer uso da assistência religiosa ou do "amparo espiritual", como o diretor mesmo afirma, para alcançar o objetivo de ressocialização do preso.

O que foi dito por dois presos, na primeira publicação, não foi rebatido pelo diretor. Um afirmara que o acesso a outras programações só ocorria "de vez em quando". Outro dissera querer “ver o que acontece no mundo”. Aqui, há um flagrante de como a programação é restrita e o diretor Luís Fernando reafirma, sem querer, essa restrição e se mostra acima do bem e do mal: "Eles [os detentos] não estão preparados para escolher o que é bom porque não têm instrução. Vão querer ver programa com mulher nua e o do Gugu". Como assim "não estão preparados para escolher o que é bom" e "não têm instrução"? Boa pergunta...  Seria importante que o diretor pudesse ser claro quanto ao que foi dito.

Algumas outras perguntas poderiam ser feitas, a partir das palavras do próprio diretor em sua manifestação à matéria publicada na Folha de São Paulo: por que a primazia das religiões católica e evangélica? Não existem outras crenças, como o kardecismo e o umbandismo, por exemplo? Há de se contra-argumentar: não existem, na região, canais que propaguem essas religiões. Certo, mas livros existem. A Bíblia Sagrada pode. O Evangelho Segundo o Espiritismo, não. 

O que significa "a religião é um fator de refreio social"? Algum sociólogo de plantão poderia clarear minhas ideias?

Um outro aspecto interessante na posição do diretor Luís Fernando é o fato de ele invocar a Constituição Federal como a querer dar respaldo legal às suas ações  religiosas e morais: "lembrando que o direito de assistência religiosa é assegurado, nos termos da lei, em entidades civis e militares de internação coletiva, como quartéis, internatos, estabelecimentos penais e manicômios [CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 5°, VII]. Sim, mas é preciso informar ao diretor que a Lei de Execução Penal é explícita em seu Art. 24, § 2º: Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa. Nos termos da lei, isso por si só basta e é necessário não confundir o sentido de "assegurar" com o de "obrigar". Além disso, "O Estado brasileiro é laico", como bem afirma o juiz Márcio Fraga, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Desse modo, as atividades religiosas no sistema prisional devem ser uma opção, pessoal e intransferível, daquele aprisionado que deseje externar sua fé. Ou será que se pretende, também, questionar a fé do preso, porquanto ele não tem instrução e não sabe escolher o que é bom?

Educação, atividade laboral e, sobretudo, respeito ao aprisionado nos termos da lei, diretor, devem ser molas propulsoras para o resgate da cidadania do[a] detento[a] e a futura inserção na sociedade que ele[a] maculou com seus delitos.

Não vai aqui nenhuma censura pessoal às ações do diretor Luís Fernando, apenas expresso uma posição enquanto cidadão que pode, por alguma desventura [quem sabe?], ter de enfrentar este sistema falido e degradante para a pessoa humana [mesmo que delito tenha cometido, deve continuar a ter seus direitos básicos preservados]. Sou pai, filho, irmão, tenho família, tenho amigos[as].

Por fim, creio que todas essas mazelas ocorridas no sistema prisional acontecem porque o Estado é ineficiente quando se trata de observar a lei por razões que a razão conhece.


[1] Leia publicações aqui e aqui.

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