Por Heloísa Vilela
Foram cinco horas subindo o morro. Passando por cima de corpos, por gente rezando, cantando e queimando as vitimas. Roseana Kipman, mulher do embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, não é uma mulher avessa ao trabalho pesado. Não é do tipo salto alto, “não piso na lama”. Foi ela que localizou o corpo da brasileira Zilda Arns quando, conversando com um padre haitiano, descobriu exatamente onde Zilda estava no momento do terremoto. E orientou o trabalho dos engenheiros.
“Quando apontei a laje certa e pedia a ele para removê-la, logo vi o pé da Zilda. Disse a eles que era o pé dela. Ele me perguntou como eu sabia. Eu sou mulher, conheço o pé de outra mulher”. E ela tinha toda razão.
Roseana Kipman dá aulas de português aqui no Haiti. Mas ensina muito mais aos brasileiros, que chegam aqui com visões pré-concebidas do país. “Essa historia de que eles estão queimando corpos porque são violentos, esse monte de coisa que estão falando lá no Brasil, não é nada disso… Eles aqui acreditam que quem morre sem uma parte do corpo vai voltar na próxima vida sem aquela parte. Por isso, eles queimam o corpo”.
Pra mim, em particular, ela esclareceu algo que vinha me embatucando desde que botei o pé em Porto Príncipe. Em dez dias de trabalho, entrevistei várias pessoas que perderam tudo, inclusive os parentes. Mães sem filhos, filhos sem pais, etc. E nesses dias todos, vi apenas uma mulher chorar, desesperada.
A embaixatriz esclareceu. Disse que esse aqui é um povo sobrevivente. Que já passou e ainda passa por muitas privações. O índice de mortalidade infantil é muito alto. “Ninguém pode ficar se apegando a uma criança que pode morrer”. É, como repetiu dona Roseana, uma questão de sobrevivência. Outro exemplo? As pessoas comem, em media, um prato de comida, dia sim, dia não. E os mais fortes são os primeiros a comer. As crianças ficam para o fim. Um homem forte pode salvar uma criança. Mas alimentar a criança que não vai poder salvar a vida de um adulto forte não faria o menor sentido.
E por aí vai. A lista é longa. Olhar o país com um filtro que já veio pronto, no momento de uma tragédia como esta, não vai permitir a ninguém compreender o que se passa, já se passou e ainda vai se passar no Haiti. Falar de violência quando os haitianos retiram mercadorias das lojas que ruíram e que as retroescavadeiras começam a limpar é, no mínimo, um erro de interpretação.
Ao lado dessas lojas, barraquinhas vendem de tudo. As feiras, nas ruas, estão abarrotadas de produtos. Se houvesse violência e vandalismo, todos os vendedores seriam atacados. E nós, obviamente estrangeiros, também. Andei no meio dos chamados saques. Nunca me senti ameaçada. Nunca senti medo de ser assaltada ou tratada com brutalidade. Conheci um povo pacífico, que sorri fácil quando a gente chega perto.
Dona Roseana Kipman não é daquelas otimistas ingênuas. Ela diz que o Haiti já passou por três furacões no ano passado e agora um terremoto. “Que será que vai acontecer no ano que vem?”, ela pergunta. Eu tento uma saída positiva: vai ser ano de reconstrução. Mas ela me corrige: “Vamos ver. Deus é um cara divertido!”.
Comentário da editoria-geral: o olhar da embaxatriz sobre o que ocorre no Haiti é o que se pode chamar de "olhar vertical". Aquele olhar que desnuda a ingenuidade, destrói preconceitos infundados, aponta para uma discussão serena e sedimenta um dos caminhos para a rescontrução do país: "Deus é um cara divertido.", diz ela. Esta é uma mulher a quem devemos respeitar. Parabéns por sua atuação no Haiti, sra. Roseana Kipman!
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