Desde há muito, o país vivencia seu terremoto histórico e social afastado dos holofotes das mídias. Comentava-se sua pobreza, mas, havia um certo descaso racista em relação às suas possibilidades e o seu futuro.
Luís Carlos Lopes*
O primeiro lugar de terra firme pisado por Colombo nas Américas, em 1492, foi a Ilha de São Domingos, a mesma hoje ocupada por duas nações: o Haiti e a República Dominicana. Depois do grande terremoto recente, inúmeros países desfraldaram suas bandeiras por lá. É verdade, levaram ajuda, água, comida e o precioso socorro técnico aos soterrados. Médicos, enfermeiros, pessoal de apoio, equipamentos, suprimentos de saúde e medicamentos, em muitos casos jamais vistos pelos haitianos, chegaram com uma rapidez antes desconhecida.
Quantias impressionantes foram liberadas por vários países, sobretudo os EUA, para soerguer o país. O terremoto fez em dias o que não se tinha a perspectiva de se alcançar em um século. A dívida externa do país foi praticamente zerada. O vazio da inexistência de um governo central minimamente organizado, faz pensar nos enormes riscos. Estes se concentram na administração das dotações/doações. Na verdade, estão praticamente sem destino, tal o caos estabelecido e o histórico de governos e elites sanguinárias e ultracorruptas.
O país não tem mais um exército regular, mas os uniformes militares norte-americanos e os efetivos aumentados dos já antes conhecidos capacetes azuis da ONU fazem parte da nova paisagem do país mais trágico e problemático das Américas. Uma enorme quantidade de armas, veículos de guerra e equipamentos bélicos e de apoio logístico desembarcaram por lá. O aeroporto da capital, agora sob o controle assumido dos EUA, nunca teve tal movimento. Obras de emergência estão sendo feitas no porto, no aeroporto, nas estradas e na circulação urbana.
O país vem sendo reorganizado de fora para dentro, com todos os problemas que se possam imaginar que isto possa vir a causar. A não ser por interesses geopolíticos regionais, não há muito a disputar no país de povo mais pobre das Américas. O Haiti não tem riquezas minerais expressivas e conhecidas. Sua agricultura refere-se a uma outra época. Sua mão-de-obra é pouco qualificada e seus trabalhadores são muito pobres e doentes para servirem aos propósitos neocoloniais do presente.
Desde há muito, o país vivencia seu terremoto histórico e social afastado dos holofotes das mídias. Comentava-se sua pobreza, mas, havia um certo descaso racista em relação às suas possibilidades e o seu futuro. A miséria hegemônica de seu povo, sua forte religiosidade sincrética e a simplicidade de sua economia e cultura material apareciam em flashs, sobretudo quando as massas se movimentavam e as elites conspiravam em mais um golpe na tentativa de impedir qualquer mudança.
As terríveis forças da natureza que fizeram tremer a terra haitiana trouxeram enormes dores e sofrimentos difíceis de apagar. Pelo menos, o terremoto geológico teve uma virtude. Escancarou a tragédia histórica do país e vem obrigando a todos a refletirem sobre as dívidas que o Ocidente carrega com os povos de origem indígena e africana. Os índios do Haiti foram eliminados na época colonial espanhola. Os africanos que vieram para produzir o açúcar, enquanto escravos, foram os que sobraram das sucessivas ocupações vividas pelo país.
Os franceses derrotados, em 1804, na primeira revolução negra da história humana foram obrigados a fazer concessões, sem no fundo nada alterar. Apesar de fazer parte da francofonia, os haitianos sempre foram considerados uma espécie de primos pobres, ainda mais pobres do que países africanos que usam do mesmo idioma. A miséria haitiana envolvente é, desde há muito, um estigma frente aos países onde a presença de imigrantes vindos de lá é significativa.
Ninguém se pergunta sobre as origens do problema e não o relaciona aos séculos de escravidão, opressão e corrupção das elites. O mundo do trabalho haitiano era tão violento que é de lá que se originou o mito dos zumbis. Estes seriam imagens retidas dos que trabalhavam até mais do que vinte horas por dia nos canaviais. Vê-los perambulando dia e noite, devia ser uma visão aterradora. Daí a lenda dos mortos-vivos usada na baixa literatura e na filmografia modernas. O vodu foi demonizado pela cristandade como coisa do diabo e não foi respeitado como uma expressão da cultura de um povo que viveu e ainda vive para além do máximo de opressão conhecida em termos universais.
Para os brasileiros, as imagens que as mídias têm mostrado trazem um misto de compaixão, identidade étnica e de ódio com tanta vilania e desprezo da humanidade com parte de seus filhos. Há veneno midiático nos focos explorados, espetacularização e desinteresse em explicar o porquê das coisas. Dá-se muita importância a disputa insana por comida e água e a atos de violência filmados do que uma explicação mais objetiva da situação política e social realmente existente.
Outra virtude do terremoto foi a de fazer os EUA sair de trás das cortinas e aparecer nua e claramente como grandes interessados no país, isto é, em ditar o que seria bom para seu futuro. Do país mais arrasado do que tivesse sofrido um bombardeio aéreo maciço, nascerá um novo Estado e Governo e a potência do Norte quer que ele seja pró-americano. Para isto está disposto em contribuir com uma grande ajuda, ao mesmo tempo direcionar, sem qualquer espírito democrático, o futuro dos haitianos.
Entretanto, os haitianos em inúmeros eventos passados demonstraram que acabam conseguindo renascer das cinzas e fazer valer os seus direitos nacionais. O que acontecerá quando terminar a atual etapa de retomada do fôlego nacional, ainda não se sabe, mas se pode prever que irá haver lutas de reafirmação e de busca de saídas dignas para o belo país antilhano.
*Luís Carlos Lopes é professor e autor do livro "Tv, poder e substância: a espiral da intriga", dentre outros
Fonte: Carta Maior
Um comentário:
Agora com o empenho de reconstrução de vários países como o Brasil trazem esperança, cujo povo, como bem disseste tem capacidade para se erguer das cinzas. Eles farão dessa ajuda milagres e vão agradecer a ajuda mundial com suas características culturais, com sua sabedoria única. Nós vamos assistir a isso. O pior já passou.
Eu estava observando como existem pessoas bonitas no Haiti, pessoas que apesar da pobreza parecem ter bastante auto estima e cuidados pessoais.
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