Após o vexame da Ferrari no último domingo, quando a equipe mandou Felipe Massa ceder a vitória para Fernando Alonso, muito foi falado sobre a existência do jogo de equipe na Fórmula 1. Nos comentários do blog e no Twitter, recebi alguns questionamentos sobre a situação entre Ayrton Senna e Gerhard Berger, que correram juntos na McLaren entre 1990 e 1992. Para não ser traído pela memória, já que tudo aconteceu há quase 20 anos, fui pesquisar as corridas de ambos neste período. A relação entre os dois pilotos era muito diferente da existente na Ferrari de Michael Schumacher e na atual gestão do time italiano.
Antes de mais nada, vamos aos números. Os dois pilotos disputaram 48 GPs juntos pela McLaren em três temporadas. E em nenhuma vez em todas estas corridas, Berger teve de abrir caminho para o brasileiro; muito pelo contrário: foi o brasileiro quem cedeu a vitória no GP do Japão de 1991, a pedido de Ron Dennis, então chefe da equipe inglesa, já que o austríaco ainda não tinha vencido pelo time e como forma de gratidão pela ajuda no trabalho durante todo o ano. A prova em Suzuka marcou a conquista do tricampeonato de Senna.
Aliás, esta corrida em Suzuka marca o único registro de jogo de equipe desta época na McLaren. Senna disputava o título contra Nigel Mansell, da Williams, e Berger marcou a pole position da corrida. O brasileiro saía em segundo e o inglês, em terceiro. Os dois combinaram, então, que o austríaco se manteria à frente no início e tentaria abrir vantagem para garantir pontos para a McLaren no Mundial de Construtores. Senna enfrentaria Mansell diretamente: “Eu sei como enfrentá-lo”, disse na época. Não deu outra: o brasileiro enervou o “Leão”, que, na 10ª volta, saiu da pista na primeira curva, atolou na caixa de brita e teve de abandonar a corrida.
Já com o título nas mãos, Senna foi à caça de Berger e o ultrapassou. O brasileiro abriu uma grande vantagem, que caía gradativamente nas últimas voltas. Após uma longa conversa pelo rádio, em que Ron Dennis tentava convencer o tricampeão, ele acabou cedendo a vitória para o austríaco a 50 metros da linha de chegada, como forma de agradecer pelo trabalho prestado. O gesto acabou incomodando Senna, que gostaria de vencer a corrida de seu terceiro título e também Berger, que ficou muito constrangido com a “homenagem” orquestrada pela McLaren.
Em seu livro “Na reta de chegada”, que comprei há alguns anos, Berger contaria os bastidores deste episódio. Segundo o austríaco, seu carro teve problemas de escapamento na segunda metade da corrida e ele teve de diminuir o ritmo. Ele já estava conformado com a segunda posição, quando Senna tirou o pé próximo da bandeirada e não lhe deu tempo de reação. No início, achava que o brasileiro tinha ficado sem combustível, mas depois descobriu a essência do “grande gesto” do tricampeão no fim da corrida em Suzuka.
- Seu comportamento comigo só me deixou magoado uma vez naquela temporada, quando ele me entregou a vitória no Japão. Foi um gesto desnecessário. Se realmente ele quisesse fazer algo significativo para mim, depois de um ano sem brilho, ele teria feito dez voltas antes: daríamos um belo espetáculo e, no final, eu ganharia. Mas o modo que ele fez mostrou ao mundo inteiro quem mandava. O que ficou foi seu brilhante show de força e sincera generosidade. Nunca trocamos uma palavra sobre o acontecimento. Eu não agradeci e ele não explicou quais foram suas razões para ter feito o que fez. Apesar de tudo, nossa amizade não foi prejudicada – disse Berger, em um dos melhores capítulos de sua autobiografia.
Ao contrário do que possa parecer hoje, a posição de segundo piloto da McLaren não foi imposta a Berger. O austríaco garante que nenhuma cláusula deste tipo estava colocada em seu contrato. Piloto rápido e acostumado a derrotar seus companheiros em outras equipes, ele encontraria uma barreira quase que intransponível no time inglês. Em entrevista à rede de TV inglesa BBC, em 2004, dez anos após a morte do brasileiro, foi bastante sincero e contou um pouco dos bastidores destes três anos.
- Senna errava muito pouco. Eu tentei estudá-lo para ver onde podia ganhar, mas ele era muito completo, quase não havia chance para superá-lo. Ele conseguia extrair o máximo de qualquer carro. Em toda minha carreira, sempre senti que podia superar qualquer companheiro de equipe. Não diria que era fácil, mas era possível. Por isso é que não achei que teria problemas ao ir para a McLaren e enfrentar Ayrton. Porque pensei que seria mais um. Mas, após duas ou três corridas, percebi que ele era especial, era o melhor. Schumacher talvez seja tão bom quanto ele no lado esportivo, mas Senna estava em outro nível porque tinha uma personalidade superior. Era a combinação da pessoa com o atleta que fazia dele alguém tão diferente.
Após três anos frustrantes, sendo sempre batido pelo companheiro de equipe, Berger resolveu voltar à Ferrari em 1993. Apesar disso, a amizade com Senna permaneceria inabalada até a morte do brasileiro, em 1994. Conhecido na Fórmula 1 por sua descontração, o austríaco também era vizinho do tricampeão em Mônaco. Segundo o austríaco, o brasileiro tirava a “máscara” de seriedade longe da imprensa e se revelava um brincalhão.
- Ele passava a imagem de um cara extremamente dedicado e sério. Dedicado era, mas, na intimidade, era muito descontraído e a fazia a gente rir bastante. A gente se divertia muito.
Voltando ao presente, as atitudes da Ferrari em termos de jogo de equipe não têm precedentes. A equipe usa esta tática há muitos anos, mas desde a época de Michael Schumacher no time as trocas de posições são descaradas. O constrangimento foi tanto que a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) teve de se meter e criar uma regra para proibir este tipo de coisa na categoria. Para quem não conhecia a história, o heptacampeão foi o piloto que mais se aproveitou deste tipo de atitude na Fórmula 1. E a equipe italiana parece querer ver este filme novamente, desta vez com Fernando Alonso de protagonista.
Para quem não conhecia, esta é a história da McLaren de Ayrton Senna e Gerhard Berger. E não se enganem: mesmo quando o brasileiro chegou na equipe, em 1988, para correr ao lado de Alain Prost, não existia jogo de equipe. O tricampeão era tão egoísta – característica comum à maioria dos donos de título na Fórmula 1 – que não aceitaria qualquer privilégio ao “Professor”. Em caso de qualquer suspeita, Senna reclamava, como aconteceu na segunda metade daquele ano. A F-1 vivia outros tempos: a esportividade não era suplantada pelos caprichos de um piloto. Exemplo que deveria ser usado novamente nos dias de hoje pela categoria.
Do G1
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