domingo, 24 de outubro de 2010

Desconstruindo o voto "consciente" by David Carneiro.

Extraído do Blog do Pedro Nelito.

O texto abaixo foi publicado na quarta-feira, 6 de outubro de 2010 no blog Tribuna do Davi.
Já que estamos próximos da mãe de todas as eleições, a reflexão de Davi Carneiro deve ser compartilhada para que no dia 31 próximo, cada cidadão assuma as suas responsabilidades sem clichês ditados pela deusa de platina (Rede Globo), ok?
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Desconstruindo o voto "consciente" por David Carneiro*

1 - À cada nova eleição vem à tona o discurso do “voto consciente”. Na mídia, não são raros os articulistas que clamam por consciência na hora do voto e se lamentam daqueles que desvalorizam um dos mais fundamentais instrumentos da democracia. De alguma forma, é sempre importante discutir parâmetros para apreciar o valor do voto, seja lá o que isso signifique. Os problemas começam quando, inconscientemente, o discurso do “voto consciente” acaba por criar duas categorias de eleitores.
2 - Não se pretende aqui defender um relativismo no que concerne aos fatores que impelem um eleitor a votar em um ou outro candidato. Mas fazer a crítica a um tipo específico de “voto consciente”, aquele que povoa o senso comum e parece, por vezes, reforçar alguns estigmas anti-democráticos da sociedade brasileira. O discurso do “voto consciente” ao qual nos referimos está geralmente associado a três fatores que o identificam 1) O voto bem informado 2) O voto em pessoas honestas 3) O voto em pessoas inteligentes, com boas propostas para o país.
3 - À primeira vista, estes parâmetros pareceriam adequados, ainda que não suficientes, para avaliar o valor do voto, não fosse pelas dificuldades implícitas na verificabilidade dessas proposições e na ambigüidade que elas carregam consigo. O que significa estar bem informado em um país onde a mídia é dominada por pequenos grupos e oligarquias francamente comprometidos com uma agenda específica para o país? Qual seria o grau de informação ou o “tipo” de informação necessária para avaliar um “voto consciente”? Quanto à honestidade, não há dúvidas de que ela deveria figurar como requisito para todo o homem público. Mas em meio a um sistema com problemas institucionais profundos, a moralidade política aparece por vezes no cenário político como um slogan de efeito catártico no eleitorado, não raro proferido por aqueles sabidamente comprometidos com interesses escusos. No entanto, para certa parcela deste mesmo eleitorado, parece valer o lema de Pompéia: “o mais importante é parecer honesto”. Sobre reforma política, nem uma palavra. Aliás, este é um tema muito complicado para o eleitor “consciente”.
4 - Talvez fruto de nossa herança tecnocrática, é corrente ainda o pensamento de que a democracia deva ser gerida por um grupo de notáveis, homens inteligentes, em contraposição aos ignorantes que nada sabem sobre os problemas do país. Não raramente, líderes sindicais, políticos oriundos de movimentos sociais ou simplesmente de origem humilde são inclusos neste último grupo, como se pessoas munidas de certos conhecimentos específicos, tivessem por si a titularidade ou a capacidade de resolver os problemas políticos melhor que os próprios interessados, a despeito dos interesses que representam e de seu comprometimento com a causa pública. Fundamentado nesta crença, para “eleitor consciente”, a consagração do apedeuta (a exemplo do Tiririca) causa mais indignação e preocupação do que a reforma agrária, o lucro dos bancos ou o trabalho infantil.
5 - A grande contribuição das revoluções burguesas do século XVIII foi eliminar, ao menos no campo formal, as diferenças entre os homens por motivo de nascimento e de classe social, sob o lema de que todos nascem iguais em direitos e deveres. Porém, até hoje, parece que não conseguimos eliminar um outro tipo de desigualdade: aquela que não é fruto do nascimento, mas das ditas desigualdades naturais entre os homens. Como se alguns, por méritos educacionais ou morais, merecessem ter mais direitos que outros.
6 - O discurso do “voto consciente” não raro tem sido utilizado para avalizar desigualdades entre os cidadãos, desqualificando o voto dos humildes, como se o “voto mal” ou a ignorância política fosse sempre associado ao eleitorado mais pobre, mesmo diante de todas as relações promíscuas que as classes dominantes sempre mantiveram com o Estado e mesmo diante das informações limitadas que condicionam o voto de todo o cidadão. A deliberação pública, por outro lado, valor garantidor e qualificador da democracia, aberto a todos, ricos ou pobres, não entra no cálculo do eleitor dito “consciente”. Ele está imerso em seu próprio mundo.
7 - Em nossa história política, confundindo o direito à educação com legitimação para hierarquização de cidadãos, confundindo formação política com informação técnica, confundindo ser honesto com parecer honesto, criamos e recriamos a nós mesmos à imagem e semelhança do Alienista, o tecnocrata de Machado de Assis. O problema é que, ao contrário do personagem, parece que não nos damos conta de nosso próprio ridículo.

*David Carneiro é militante do Partido dos Trabalhadores, poeta, compositor, ex-diretor do Centro Acadêmico de Direito da UFPA.

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