sábado, 9 de outubro de 2010

O hábito faz o monge

Essa polêmica toda que se criou em torno do episódio da demissão da psicanalista Maria Rita Kehl do Estadão me fez lembrar de uma crônica que publiquei neste espaço no dia 15 de outubro de 2008, intitulada "Três linhas até nove toques".
Nela abordei a maneira pela qual o jornal da família Mesquita tratava seus desafetos. Não tenho informações sobre se esse pitoresco modo de agir continua em prática. Sei, porém, que há hábitos difíceis de perder.
A crônica era a seguinte:

Certa vez, quando trabalhava como redator da primeira página de um tradicional jornal paulistano conhecido por Estadão, tive uma missão impossível.
 

Naquele tempo, na era pré-computador, escrevia-se, para quem não sabe, em folhas de papel chamadas laudas, que eram enviadas à gráfica. Os textos eram datilografados na largura de 70 toques ou caracteres da máquina de escrever. Os títulos tinham medidas diversas, de acordo com as colunas em que foram diagramados e com o seu corpo (tamanho). Assim, quanto mais importante a chamada da primeira página, maior o corpo e as colunas do título. Os textos eram pequenos - só a manchete passava das dez linhas, ao que me lembre.
 

Pois bem, certo dia, o fechamento já correndo, tratei de fazer uma chamada que se referia ao então governador Orestes Quércia. Estava em uma coluna, título em corpo 30. Fiz o texto - apaguei da memória sobre o que se tratava - e olhei no diagrama (o desenho da página a ser impressa) para fazer o título. Eram três linhas em uma coluna, no corpo 30. O diagramador havia anotado assim: 3 até 9. Ou seja, três linhas até 9 toques. Comecei a tentar, mas havia algo que barrava todos os meus esforços para apresentar um trabalho nos padrões de qualidade do, então, austero e exigente, Estadão: a palavra governador não cabia em uma coluna, corpo 30.
 

Mas por que eu tinha de escrever "governador" e não "Orestes" ou "Quércia", que se encaixavam perfeitamente no título, há de perguntar você que me lê? Simples, o Estadão não admitia que o nome do político saísse em suas páginas, uma prática que teve início, que eu saiba, com outro governador, Adhemar de Barros, que o jornal grafava "A. de Barros". Outro banido da história - pelo menos da sua - pelo jornal foi Leonel Brizola, referido em textos e em títulos simplesmente como "caudilho".
 

Bem, de volta a Quércia. Claro que passei o pepino ao meu chefe. E ele, homem prático, resolveu o problema da melhor maneira - dentro das circunstâncias. Mudou a diagramação e a chamada passou a ter título em duas colunas. Pelo menos assim a palavra "governador" cabia.
 

Eram assim as coisas no Estadão antigamente. Como não trabalho lá há algum tempo, não sei mais como são hoje. Já devem ter liberado o nome de Quércia - afinal, hoje ele tem pouquissima importância no jogo do poder. Brizola está morto - e o antológico cavalheirismo da família Mesquita certamente perdoa os mortos. Quanto a Adhemar de Barros, nem os livros de história se lembram mais dele.
 

Nesta era da informática, em que as informações correm muito mais rápidas que no tempo em que se ouvia o matraquear dos teletipos, esse tipo de atitude é coisa de museu. Hoje, as armas dos poderosos para combater os inimigos são outras e devastadoras.
 

Mas a receita é a mesma, permanece imutável. Começa com uma boa dose de preconceito, a seguir junta-se o ódio centenário das classes altas pelas baixas, acrescenta-se uma pitada de racismo, tempera-se com a ignorância, mistura-se bem com porções de calúnia, injúria e difamação.
 

Não tem erro. O sujeito está condenado a vagar no limbo como um pária aos olhos desses homens e mulheres de bem que determinam quem é digno e quem é indigno de viver em sua ilustre companhia.
 

Mudam os costumes, permanece o hábito.

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