domingo, 7 de novembro de 2010

Orquestra Contemporânea de Olinda e a música pernambucana como realização antropofágica

Já há duas décadas, Pernambuco tem sido o mais fértil caldeirão de hibridismos musicais do Brasil. Não se trata de que você não pudesse perfilar argumentos fundamentando a riqueza sonora de várias outras comarcas, do Rio ao Pará, passando por Bahia, Minas e Maranhão. Mas tem sido em Pernambuco, acredito, que a combinação feliz entre ritmos, melodias e instrumentações de gêneros distintos, de origens sociais, regionais e étnicas diferentes, tem se dado com mais frequência e acerto. Há uma impressionante artéria de comunicação entre o local e o global no polo Recife/Olinda, estendendo-se para dentro do estado sem perder a densidade. Desde o Mangue Beat (que eu prefiro entender como uma constelação de cenas, e não como um “movimento”), passando pelo notável renascimento do maracatu entre músicos mais jovens ou pelo diálogo frevo-jazz ou pelas várias releituras recentes do forró, Pernambuco tem dado uma aula de antropofagia oswaldiana, mostrando que a base musical da cultura brasileira é tão forte que nada tem a temer ante a deglutição de quaisquer sons de outras latitudes. Todos os outros sons lhes servem, nada do que é humano lhes é estranho.

Neste baú de profundidade aparentemente infinita, um lugar de destaque cabe à Orquestra Contemporânea de Olinda.

Idealizada pelo percussionista Gilú, a Orquestra reúne duas grandes turmas: a banda que vinha de experimentos como o Bonsucesso Samba Clube e Orchestra Santa Massa, e o conjunto do Grêmio Musical Henrique Dias, que é a primeira escola profissionalizante de frevo de Olinda, fundada em 1954. Da primeiro grupo, saíram Tiné (vocais e efeitos), Maciel Salú (filho do grande Mestre Salustiano, vocais e rabeca), Hugo Gila (Baixo), Rapha B (Bateria) e Juliano Holanda (guitarra). Comandada pelo Maestro Ivan do Espírito Santo (flauta, sax alto, barítono e tenor), a turma do Grêmio incluía também os metais de José Roque (trompete), Ibraim Genuíno (trombone) e Alex Santana (Tuba). A base é um encontrão entre o frevo e o jazz (e o funk), mas a Orquestra Contemporânea de Olinda também tem um pé na eletrificação suingada do samba realizada por Jorge Ben no começo da década de 60, como é audível em “Ladeira”:

(clique aqui para ver o clipe de “Ladeira”).

Pois bem, onde, no Brasil, um grupo oriundo da primeira escola profissionalizante de um ritmo regional poderia se encontrar, se unir, ombro a ombro, com a garotada das guitarras e baixos que fazia/ escutava rock e funk? A resposta correta é em qualquer lugar, evidentemente, porque a música brasileira é o nome da nossa inscrição na eternidade: com ela, o impensável pode acontecer, sempre, no lugar em que menos se espera. Mas em Pernambuco sucede algo desta ordem, da esfera do encontro musical inusitado e feliz, a toda hora, como que a cada esquina, há mais de vinte anos. É inacreditável.

Todo um estudo poderia ser feito das mil e uma reapropriações da rabeca na música jovem pernambucana. A exemplo de outras bandas das últimas décadas, a Orquestra Contemporânea de Olinda integra a rabeca na textura do som, indo bem além da introdução e do ocasional solo. O melhor exemplo é “Balcão da Venda”, que deixo em bela execução ao vivo, no Festival de Inverno de Garanhuns:


Como se sabe, vir a New Orleans e deixar boquiaberto um público acostumado à excelência musical não é para qualquer Zé Ruela. Imagine um forasteiro pandeirista no Rio, contista em Minas Gerais ou chef na cidade de São Paulo. Não é matéria simples. Sem as condições ideais de apresentação (por exemplo, forçados a tocar num auditório pequeno, com um público universitário em poltronas), pode até ser temerário, razão pela qual eu cheguei a ficar apreensivo antes da apresentação da Orquestra em maio último. A minha suspeita durou cerca de dois minutos.

Na primeira canção, o público já estava atônito com a variação rítmica e as sucessivas surpresas melódicas. Ao cabo de dez minutos, já não restava muita gente sentada. Depois de meia dúzia de frevos recheados de sonoridades latinas e afro-atlânticas, o auditório explodia naquele frenesi que, para qualquer expatriado, em fugaz momento que seja, produz o engasgo de orgulho e agradecimento pelo destino de ser cidadão de um lugar onde se faz música assim. A Orquestra Contemporânea de Olinda saiu ovacionada, claro, e papeou com os novos fãs longamente antes de sair para a noite de New Orleans, onde ainda curtiram uma legítima banda de metais nova-orleaniana, essa prima em primeiro grau das orquestras de frevo. Deixaram saudades por aqui Gilú, Maciel Salú e cia.

Você encontra a Orquestra Contemporânea de Olinda no MySpace, no Facebook e no Twitter. Se está em Natal, se ligue: eles tocam aí hoje à noite. No próximo dia 12, eles voltam a se exibir em casa, na Fliporto de Olinda. Não há como recomendar um show com mais ênfase que aquela que este blog reserva para o estrondo sonoro que é a apresentação ao vivo da Orquestra. Não morra sem ver.

PS: Ao longo destes anos de (mini)pesquisa sobre a música de Pernambuco, muitas pessoas de lá me ajudaram. Mas a Ana Garcia, do lendário projeto multimídia Coquetel Molotov, merece um agradecimento especial, pela orientação e generosidade em Recife.  


DO Biscoito Fino e a Massa

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