Documento ["Em Nome da Verdade" - 03 de fevereiro de 1976] assinado por 1004 jornalistas de São Paulo, Rio, Brasília, Natal, Porto Alegre e Curitiba no qual se cobram explicações sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog:
Nós abaixo-assinados, jornalistas, que acompanhamos todo o caso da morte de nosso companheiro de trabalho Vladimir Herzog - uma tragédia que traumatizou não só a nossa categoria, mas a consciência de toda uma nação - interessados na descoberta da verdade e na total elucidação dos fatos, vimos de púbico levantar algumas indagações, sugeridas pela leitura do Relatório do Inquérito Policial-Militar divulgado no último dia 20 de dezembro [1975].
O Relatório contém duas contradoções que já foram levantadas publicamente:
- a primeira é a estranheza de que o IPM tenha partido de uma Portaria do comando do II Exército [o comandante era o general Ednardo D'Ávila Melo: AQUI, AQUI e AQUI] que praticamente já indicava sua conclusão, ao determinar sua instauração "para apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio", e não as circunstâncias da morte, como seria de esperar;
- na segunda, apontada no mesmo dia de sua publicação, O Estado de S. Paulo desmentiu o depoimento do jornalista Randolpho Lobato, segundo o qual Vladimir Herzog fora demitido do jornal num expugro que teria ocorrido em 1963, contra esquerdistas da redação. Além do desmentido, O Estado citou a contradição com o depoimento do chefe da 2a. Seção do II Exército, que afirma que Herzog foi demitido em 1958. O jornal esclareceu que, na verdade, Herzog pediu demissão espontaneamente em 1965.
Além desses pontos, pretendemos chamar a atenção para outros que para nós, jornalistas, não ficaram devidamente esclarecidos e que poderão ser objeto de novas diligências, agora no âmbito da Justiça Militar, para onde o IPM foi remetido, como determina o Código do Processo Penal Militar.
Este é o nosso interesse, em nome da salvaguarda dos direitos humanos, da justiça e da busca da verdade, na qual o jornalista, por dever de ofício, tem a obrigação de esgotar todos os recursos possíveis.
Os pontos que ainda consideramos obscuros são estes:
[1] O IPM diz que Vladimir Herzog se enforcou na grade da cela em que fora colocado, "usando para tanto a cinta do macacão que usava". Não há, porém, em todo o inquérito, nenhuma explicação para o fato de o preso estar usando um macacão com cinto. Esta omissão parece contradizer toda a ênfase que várias testemunhas dão à questão da segurança dos detidos: o chefe da 2a. Seção, o comandante do DOI, um investigador e um carcereiro mencionam em seus depoimentos, além do fornecimento de roupas especiais, rondas e fiscalização permanente, como medidas de cautela. Essas medidas são tomadas, como se sabe, em qualquer repartição policial, e uma delas é a retirada de qualquer objeto que possa servir de instrumento para um suicídio, inclusive cintos e cordões de sapatos. E pelo que se conhece, do relato de pessoas que já estiveram naquela dependência militar, os macacões fornecidos aos presos não possuem cinto.
[2] Apoiando-se nos laudos periciais do Instituto Médico Legal, o Relatório acentua a "inexistência de qualquer vício que possa desacreditá-los". No entanto, existe uma incoerência, ainda inexplicada.
O laudo do Exame de Corpo de Delito, dois legistas Harry Shibata e Arildo T. Viana, descreve a roupa com que o corpo chegou vestido para a necrópsia e esta roupa não pé o macacão descrito no Laudo de Encontro de Cadáver (com fotos), dos peritos Motoho Shiota e Sílvio Shibata. A roupa com chegou ao IML, segundo o laudo, é a mesma com que Vladimir Herzog saíra de casa pela manhã, para se apresentar.
Diante disso, perguntamos:
Não se exige que o cadáver seja levado para Exame de Corpo de Delito exatamente como foi encontrado?
Como se explica que o corpo tenha sido encontrado de macacão e depois tenha chegado ao IML com outra roupa?
Outra questão: Por que não foi ouvido no IPM o capitão Ubirajara, oficial do DOI-CODI, cujo nome aparece nos laudos como requisitante da perícia?
[3] Todas as testemunhas ligadas ao DOI afirmam no IPM que havia ordens expressas para que Vladimir Herzog não pernoitasse na prisão e fosse liberado logo após escrever seu depoimento. O carcereiro diz mesmo, em seu depoimento, que o encontrou enforcado quando foi à cela "com a finalidade de retirar Valdimir Herzog a fim de ser liberado".
Perguntamos:
Como poderiam as autoridades saber de antemão, como ficou registrado no IPM, "ser de pouca relevância o depoimento daquele jornalista nos fatos investigados?"
Se o depoimento era de pouca relevância, por que houve a tentativa de prendê-lo na véspera, à noite, primeiro em sua casa, e depois em seu local de trabalho, só consentindo à autoridade com sua apresentação no dia seguinte, após interferência da direção da empresa?
Como era possível saber o teor do depoimento de Vladimir Herzog, para se ter certeza de que seria liberado em seguida?
[4] O Relatório do IPM destaca também que "o corpo de Vladimir Herzog encontra-se sepultado na Quadra 28, túmulo 64, área em que são enterrados suicidas". Essa afirmação é baseada no depoimento de um membro da Congreção Israelita Paulista.
No entanto, informação diferente foi dada na ocasião da morte de Vladimir Herzog pelo rabino Henry Sobel, que participou do culto ecumênico em memória do jornalista. Numa entrevista publicada no mesmo dia do culto, o rabino disse que os ritos seguidos no sepultamento tinha sido normais, "pois a Chevrah Kadisha [Associação Religiosa Israelita] não encontrou indícios que comprovassem o suicídio do jornalista, o que implicaria a alteração dos procedimentos, inclusive o sepultamento em local diferente" (O Estado, 31.10.1975).
São duas versões conflitantes, de dois membros da mesma religião. Qual a verdadeira?
[5] O Relatório do IPM informa que foram ouvidas 21 testemunhas "cujos depoimentos foram tomados sem qualquer constrangimento físico ou moral". Pelo que sabemos, algumas testemunhas foram ouvidas enquanto ainda estavam no DOI, sob a custódia, em última instância, das autoridades cuja atuação no caso da morte de Vladimir Herzog estava sendo investigada. Indagamos: Isto não constituiria para a testemunha uma forma de constrangimento?
Diante dessas inconsistências e de outras que ainda preocupam a opinião pública, nós, jornalistas, estamos encaminhando este documento ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, para que o entregue à Justiça; e da Justiça esperamos a realização de novas diligências capazes de levar à completa elucidação desse fatos e de outros que por ventura vierem a ser levantados.
Fonte: Vlado: Retrato da morte de um homem e de uma época - organização Paulo Markun [1a. edição, 1985, pp. 224-227]
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