terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O cerco ao WikiLeaks

Antonio Luiz M. C. Costa

Entre as muitas ironias que produziu, uma das mais saborosas do caso WikiLeaks é ter dado oportunidade ao jornal russo “Pravda” de zombar do sistema legal e da censura nos EUA.

Depois de comentar mensagens do WikiLeaks que mostram o governo Obama pressionando Alemanha e Espanha para encobrir torturas praticadas pela CIA no governo anterior, o colunista e editor legal David Hoffman tripudia: “agora, dado que o fundador do WikiLeaks Julian Assange enfrenta acusações criminais na Suécia, fica também evidente que os EUA têm o governo sueco e a Interpol no bolso. Claro que não sei se Assange cometeu o crime do qual é acusado. Sei é que para o ‘sistema’ legal dos EUA a verdade é irrelevante. No minuto em que Assange revelou a extensão dos crimes dos EUA e seu encobrimento para o mundo, tornou-se um homem marcado”. Aproveita também para apontar a hipocrisia de conservadores e seus porta-vozes na imprensa, que querem as penas mais rigorosas possíveis para o WikiLeaks mas não tiveram dúvidas em expor a agente dos EUA Valerie Plame quando o governo Bush júnior quis punir seu marido, o ex-embaixador Joseph Wilson, por denunciar provas forjadas para justificar a invasão do Iraque.

A coluna tem data de 3 de dezembro. O cerco começara com a ordem de captura internacional do governo sueco que colocou o australiano Assange na lista de “alerta vermelho”, os mais procurados da Interpol, a serem monitorados a cada passo. Com um pretexto inusitado para uma operação desse porte, se não surreal: o fundador do WikiLeaks teria continuado a fazer sexo com uma sueca depois da ruptura de seu preservativo e se recusado a usá-lo com outra. Não há sequer um indiciamento formal e as duas acusadoras, Sofía Wilén e Anna Ardin enviaram mensagens por SMS e Twitter alardeando seus encontros com Assange logo após o fato, falando deles em tom elogioso e festivo. A segunda é nascida em Cuba e escreveu artigos para uma publicação anticastrista, sugerindo que pode haver o dedo da CIA no caso.

Na véspera, a Amazon expulsara o site wikileaks.org de seus servidores. No mesmo dia 3, o próprio endereço foi deletado pelo provedor estadunidense everydns.com. Foi rapidamente transferido para um domínio registrado na Suíça, wikileaks.ch, mas com parte dos arquivos hospedados no provedor francês OVH que, ameaçado com “consequências” pelo ministro francês da Indústria Eric Besson, entrou na justiça com uma consulta sobre a legalidade da ação.

No dia 4, a Switch, provedor suíço do novo endereço, disse que não atenderia às pressões estadunidenses e francesas para deletá-lo, mas o sistema PayPal de pagamentos via internet, uma subsidiária do eBay, cancelou a transferência de doações ao WikiLeaks. No dia seguinte, a OVH saiu da rede e os arquivos passaram a ser hospedados pelo Partido Pirata Sueco e passou a sofrer ataques de hackers, mas centenas de “espelhos” do site se multiplicaram pelo mundo. O WikiLeaks também distribuiu a todos os interessados uma cópia encriptada do arquivo completo, cuja chave será distribuída caso algo aconteça com o site ou seu fundador.

Nos dias 6 e 7, as redes Mastercard e Visa também cancelaram as doações ao WikiLeaks – embora, como tenha notado o editor de tecnologia do Guardian, nenhuma delas tenha problemas com encaminhar doações ao Ku-Klux-Klan. Além disso, o banco suíço PostFinance encerrou a conta de Assange com o pretexto de que ele “mentiu” ao fornecer endereço no país – também ridículo, pois ele seguiu a praxe e deu o endereço de um advogado em Genebra. Com essas operações, o WikiLeaks perdeu cerca de 133 mil dólares. Ainda no dia 7, Assange apresentou-se à Scotland Yard e foi preso sem direito a fiança.

Toda essa farsa foi levada ao palco porque as atividades de Julian Assange e do WikiLeaks não são realmente ilegais. Várias decisões jurídicas dos EUA, notadamente a decisão de 1971 que deu ao New York Times o direito de publicar os “Papéis do Pentágono”, concordaram em que a liberdade de imprensa garantida pela Constituição se sobrepõe à reivindicação de segredo do Executivo. O funcionário que vazou os arquivos oficiais pode, em princípio, ser processado, não a organização que aceitou o material e a publicou.

O fato é que Julian Assange é hoje um preso político, detido sob o mesmo tipo de falso pretexto que é devidamente ridicularizado quando usado para se deter um dissidente russo, chinês ou iraniano. Fosse os segredos de algum desses países que tivesse revelado, o fundador do WikiLeaks seria candidato automático a um Nobel da Paz.

Ao serem os segredos dos EUA os que o australiano se dispõe a divulgar – e o que pode vir a ser ainda pior, de seus grandes bancos e empresas (a começar, provavelmente, pelo Bank of America), como anunciou em entrevista à Forbes –, políticos e jornalistas de Washington e de seus aliados do Ocidente passam a considerar justo e aceitável que seja perseguido e preso pela Interpol sob acusações que matariam de rir os responsáveis pelos Processos de Moscou da era stalinista.

O Ocidente tem dificuldade cada vez maior em conviver com os direitos e garantias em nome dos quais julga ter o dever de impor sua vontade ao resto do mundo. Sente cada vez mais a necessidade de leis de exceção e estados de exceção, que pouco a pouco viram regra. O mundo vai descobrindo que é ilusório confiar na Internet como garantia de liberdade de informação.


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