sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pepe Escobar: O imperador afia os instrumentos de tortura

por Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Oh! Não se usam mais espiões atualmente! É profissão extinta. Os jornais fazem hoje, o mesmo servicinho. [Oscar Wilde, An Ideal Husband, Ato III[1]]

“Ele não voltará à cela onde um dia esteve Oscar Wilde.”

De fato, não voltou. Mas mal sabia Mark Stephens, um dos advogados de Julian Assange, que ainda se passariam angustiosas três horas de idas e vindas, antes de que seu cliente saísse das Cortes Reais de Justiça, no centro de Londres, afinal, homem livre.   Foi como se Assange, fundador de WikiLeaks, emergindo do silêncio das sombras para a algaravia proverbialmente frenética da mídia, já soubesse que a verdadeira guerra começa agora – e nada tem a ver com fãzocas enciumadas, camisinhas com defeito e “sexo por surpresa”.

Eis o trecho chave da breve declaração que Assange leu imediatamente depois de novamente respirar o ar de Londres. Disse ele:   “Preso numa cela solitária no fundo de uma prisão vitoriana, tive tempo para refletir sobre as condições em que tantos vivem confinados, em todo o mundo, em celas solitárias, e que lá continuam, em condições muito mais difíceis do que as que enfrentei. Todas essas pessoas precisam da atenção e do apoio de vocês.”

Em outras palavras: prestem imediata e total atenção ao que o governo dos EUA está fazendo a Bradley Manning, o soldado de 22 anos acusado ter vazado centenas de milhares de telegramas para WikiLeaks. Manning continua preso em cela solitária, no quartel da Marinha dos EUA em Quantico, Virginia, já há cinco meses. Não foi julgado nem condenado. Em artigo devastador publicado em Salon, Glenn Greenwald diz que Manning sobrevive em condições “que caracterizam tratamento cruel e desumano e que, pela lei de várias nações, configuram tortura.” [2]

Foi o modo tenso que Assange encontrou para dizer ao mundo: Big Brother está de olho em vocês. O que estão fazendo a Manning querem fazer comigo e, metaforicamente, com todos que creiam na liberdade de informação.  

Pede pra sair, vazador[3]

Para grande horror do imperador, WikiLeaks continua na luta, de agora em diante confortavelmente instalada numa vasta e remota casa de campo, Ellingham Hall, para onde Assange foi mandado sob fiança, entre Norfolk e Suffolk.   Assange será convidado de honra do ex-capitão Vaughan Smith do exército britânico, além de fundador do Clube Frontline de jornalistas em Londres, onde Assange já morou por algum tempo.

Como o porta-voz de WikiLeaks spokesman Kristinn Hrafnsson esclareceu, a banda larga é boa. E isso é tudo de que todos os membros de WikiLeaks que “nunca estiveram no lugar de Assange” precisam.   E assim Assange vai-se convertendo no mais conhecido prisioneiro político em todo o mundo.

Agora todo mundo sabe, graças ao blogueiro advogado Carl Gardner, que quem de fato se opôs à libertação sob fiança de Assange na 3ª-feira passada foram os procuradores da coroa britânica – não os suecos (tecnicamente, segundo o art. 12 da legislação europeia  [ing. European Arrest Warrant], a procuradoria sueca também declarou que permanece aberta a via legal para que Assange seja extraditado para outros países da União Europeia).

Com tudo isso, aumentou em todo mundo a suspeita de que o Reino Unido estava usando o novelão sueco da camisinha defeituosa/“sexo por surpresa” como pretexto para manter Assange em cela solitária, sem seu computador, durante 23 horas e 30 minutos por dia, sob vigilância ininterrupta de câmaras de lentes infravermelhas, até que “o relacionamento especial” com os EUA gere alguma acusação recém-inventada que possibilite outra ordem de extradição.

Na quinta-feira, antes de assinar a liberdade condicional de Assange, o juiz britânico Duncan Ouseley reconheceu um ponto crucial: que Assange cooperou com os suecos, e até que estava convencido de que, na Suécia, havia forte probabilidade de que Assange sequer tivesse sido preso.   Antes, no mesmo dia, o advogado de Assange, Stephens, dissera que “Ainda não tratamos da questão da ação legal dos EUA, se é possível ou não.”

Bem, melhor que tratem logo de tratar disso, e rápido. Mesmo que uma possível acusação pelos EUA de “conspiração” não tenha equivalente no Reino Unido. E, isso, para não falar que os EUA não têm jurisdição nos locais onde talvez tenham ocorrido esses ‘crimes’, que só são crimes nos EUA.   Só os mortalmente ingênuos acreditam que o Departamento de Justiça dos EUA não ordenou ao governo sueco que mobilizasse a Interpol para obter um mandato de prisão à velocidade da luz, associado à saga melosa da camisinha defeituosa/“sex por surpresa”.

Em toda a extensão do país das liberdades, o imperador move seus canhões contra a China (pode-se dizer que todos os imperadores se parecem), censurando os métodos de censurar a internet – e a televisão – para ver se soterra, sob uma montanha de esquecimento, todos os telegramas. Alguns dos métodos dos EUA são dignos dos Três Patetas: a Força Aérea dos EUA bloqueou dos próprios computadores, tudo que tenha a ver com “cablegate”; o Pentágono proibiu tudo, inclusive ler jornais!

Alguns métodos são ligeiramente mais refinados. Assange foi escolhido “Personalidade do Ano”, em pesquisa entre os leitores da revista Time. Mas os editores em nenhum caso teriam colhões para respeitar a opinião pública, se isso enfurecesse ainda mais o imperador. Passaram então o prêmio para um autista abobalhado que inventou o Facebook porque levou um fora da namorada.

Para Barbara Walters, endeusada nos EUA como uma espécie de Hera dos entrevistadores de televisão, Assange não passa de “criminoso limítrofe”; não fosse assim, nunca mais ganharia nem um “oi” de Hillary Clinton. Bill Keller, editor-chefe do New York Times, teve estômago para escrever que: “Concordamos de todo o coração com a ideia de que a transparência não é bem absoluto. A liberdade de imprensa inclui a liberdade de não publicar, e essa é uma liberdade que exercemos com alguma regularidade”. Keller, considerado jornalista, na prática só deseja não ter de publicar coisa alguma que tenha a ver com “cablegate”. Já disse, com todas as letras, que, para o New York Times, é função da imprensa zelar pelos segredos do governo.

Nos remotos tempos dos sovietes havia o Pravda; agora, o Pravda mora em Nova Iorque e é escrito em inglês [4].   E, cereja do bolo, temos o governo de Barack Obama, Prêmio Nobel da Paz, que lançou todos os cães de uma blitzkrieg extrajudicial contra WikiLeaks. O fato de que WikiLeaks não feriu nenhuma lei norte-americana é, claro, irrelevante.   O imperador carece desesperadamente exibir um exemplo: vejam o que acontece com quem desafia o desejo do imperador. Mas não se pode dizer que a estratégia do Departamento de Justiça dos EUA incorpore exatamente o imperativo categórico de Kant. Tentarão de tudo, possível e impossível, para obrigar Manning a depor contra Assange –, para, depois, acusarem Assange de crime de conspiração no “cablegate” e nos vazamentos de arquivos do Iraque e do Afeganistão.

RESUMO: o governo Obama obra para criminalizar o jornalismo investigativo. Criminalizar o bom jornalismo. Ponto. O professor de Direito de Yale Jack Balkin já disse que “a teoria da conspiração também ameaça os jornalistas tradicionais”. E tudo isso, por aplicação de uma lógica tortuosa digna da era Bush: “OK, fazemos um acordo com o americano imbecil que vazou aquela merda. Depois pegamos o estrangeiro imbecil que pôs aquela merda na internet”.   O governo dos EUA prepara-se para meter WikiLeaks na câmara de tortura. Começarão com a tortura do semiafogamento. Todos estamos ameaçados de morte.



[2] 16/12/2010, “Getting to Assange through Manning”, Glenn Greenwald, Salon, em http://www.salon.com/news/opinion/glenn_greenwald/2010/12/16/wikileaks

[3] No orig. “Make my day, leaker”; “make my day” é fala do Inspetor (Dirty Harry) Callahan [Clint Eastwood], no filme Sudden Impact (1983). Traduzimos aqui pela expressão “Pede p’rá sair”, fala do Capitão Nascimento [Wagner Moura], no filme Tropa de Elite. Nenhuma tradução é perfeita e algumas podem ser muito imperfeitas. Só a luta ensina (NTs).

[4] No Brasil, o colunista Luis Felipe Pondé escreveu na Folha de S.Paulo, 13/12/2010, em “Terroristas”: “E o terrorista do WikiLeaks brinca de justiceiro acusando os EUA de inimigo da democracia. Piada idiota. E tem gente que crê nessa bobagem” (em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1312201018.htm), para citar um exemplo; há muitos.

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