A propósito da aprovação e implementação da Comissão da Verdade proposta pela ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, reproduzimos abaixo artigo do jornalista e professor Emiliano José.
Tortura e verdade
A pretensão de sepultar o assunto da tortura, do assassinato e do desaparecimento de pessoas durante a ditadura é vã. É sempre o velho gesto de jogar a sujeira para debaixo do tapete, tentar ignorar os fatos da história. Eles voltam, os fatos, por mais que se faça a tentativa de ignorá-los. Até porque, não houvesse outros aspectos mais amplos, há a dor, a viuvez de tanta gente, a mãe que ainda chora, o filho ou a filha que não viu o pai, as tantas pessoas que não puderam sequer enterrar os seus entes queridos, enterrados ninguém sabe onde, assassinados sempre de maneira cruel, sempre sob a covardia da tortura.
Novamente, e mais uma vez, logo que a nova ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, defendeu a aprovação pelo Congresso Nacional da Comissão da Verdade para esclarecer os crimes cometidos contra adversários políticos durante a ditadura, vozes dentro do próprio governo federal se levantaram para contraditá-la. Isso já havia ocorrido, e faz pouco tempo, quando o então ministro Paulo Vannuchi defendera posição semelhante, inclusive a imprescritibilidade do crime da tortura. Creio que é preciso situar corretamente a questão para não incorrermos em equívocos históricos e conceituais. E reafirmar que o crime de tortura é imprescritível e que nenhuma nação pode deixar de apurar os crimes cometidos durante uma ditadura. Tal procedimento é da tradição democrática.
O general José Élito Siqueira saiu-se com o argumento de que sendo o 31 de março um dado histórico, “os desaparecidos são história da nação, de que nós não temos que nos envergonhar ou vangloriar”. O raciocínio é pobre e equivocado. E carrega a crueldade dos defensores da ditadura. Imaginemos que alguém, depois da derrota de Hitler, viesse a público para dizer que o nazismo era simplesmente um fato histórico e que os fornos de Auschwitz não deveriam representar qualquer vergonha e nem deveriam ser motivo de vanglória.
A ditadura é um dado histórico que envergonha profundamente a nação brasileira. Diante dela, ninguém que professe a democracia e que seja fiel à história pode ficar indiferente e deixar de repudiá-la até para que nunca mais se repita. E os seus crimes devem e têm que ser apurados, como têm feito nossos irmãos latino-americanos, como o fizeram os democratas e comunistas que venceram a batalha contra o nazismo.
O ministro Nelson Jobim, que sempre teve lado nesse caso, disse que a Comissão da Verdade deveria também avaliar as ações desenvolvidas pelos “movimentos guerrilheiros”, como ele chamou. Decerto está querendo que os milhares de torturados, presos, e condenados sejam submetidos, quem sabe a novos julgamentos e a novas punições. O que as diversas organizações políticas de luta contra a ditadura faziam, não custa lembrar isso a um Jobim que um dia se disse constitucionalista, era exercer o direito de insurgência e resistência que é próprio do liberalismo moderno. Do liberalismo, insistamos. Talvez fosse o caso de lembrar a luta armada que determinou o surgimento dos EUA, para não darmos dezenas de outros exemplos. A ditadura rompeu com o Estado de Direito pela violência, de modo ilegal, e era um direito básico o da insurgência.
No raciocínio do general e de Jobim, caberia rever a história mundial recente, e julgar todos os que se envolveram no impressionante movimento anticolonial, que determinou a libertação de tantos países mundo afora, particularmente no território africano. O que se cobra, o que se tem feito em toda a América Latina é o julgamento dos que cometeram genocídios, dos que mataram covardemente pessoas na tortura, que fizeram desaparecer pessoas, e o exemplo mais recente é o de Rafael Videla, condenado à prisão perpétua na Argentina. A anistia, como determinou recentemente a OEA em relação ao Brasil, não alcança torturadores, contrariamente à opinião do STF.
Uma nação não pode sufocar a verdade. E nem pretender deixar de ajuizar todos os fatos históricos. Alguém poderia justificar a escravidão, a ignomínia da escravidão no Brasil? Não. Como não pode deixar de repudiar, de levantar todos os crimes cometidos pelos agentes da ditadura que torturaram e mataram pessoas. Só isso. Paulo Sérgio Pinheiro escreveu artigo recente no jornal Folha de S. Paulo (17.1.2011., p. 3) onde apropriadamente diz que o passado nunca está morto.
Mais: quanto a este assunto, nem passado é ainda. Ainda recuperando o que diz o ex-secretário de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso, cabe lembrar que o pai do general-presidente da ditadura, João Batista de Figueiredo, então deputado Euclydes Figueiredo, em 1946, requereu a criação de uma comissão de inquérito que examinasse os crimes do Estado Novo. A comissão, a primeira comissão da verdade, foi criada, mas não funcionou por falta de quorum – ou seja, não havia vontade política suficiente para fazê-la funcionar.
A Comissão da Verdade proposta pelo então presidente Lula, acolhendo sugestão do ministro Paulo Vannuchi, visa o esclarecimento histórico dos horrores praticados pela ditadura, situando tudo no contexto ampliado daquela circunstância histórica de triste memória. Não tem caráter de revanche. Não tem qualquer mandato judicial. Não há, ali, réus sendo julgados. Só pretende a verdade, não mais do que a verdade. A nós, e parafraseio Gramsci, só interessa única e exclusivamente a verdade. Esta Comissão, como também revela Paulo Sérgio Pinheiro, acolhe o melhor das 40 comissões da verdade no mundo, a indicar o quão ampla é, e o quanto tem sido normal o procedimento. Argentina, Chile, Bolívia, Peru, por exemplo, viveram essa experiência.
A pergunta que não quer calar é: quem tem medo da verdade?
Novamente, e mais uma vez, logo que a nova ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, defendeu a aprovação pelo Congresso Nacional da Comissão da Verdade para esclarecer os crimes cometidos contra adversários políticos durante a ditadura, vozes dentro do próprio governo federal se levantaram para contraditá-la. Isso já havia ocorrido, e faz pouco tempo, quando o então ministro Paulo Vannuchi defendera posição semelhante, inclusive a imprescritibilidade do crime da tortura. Creio que é preciso situar corretamente a questão para não incorrermos em equívocos históricos e conceituais. E reafirmar que o crime de tortura é imprescritível e que nenhuma nação pode deixar de apurar os crimes cometidos durante uma ditadura. Tal procedimento é da tradição democrática.
O general José Élito Siqueira saiu-se com o argumento de que sendo o 31 de março um dado histórico, “os desaparecidos são história da nação, de que nós não temos que nos envergonhar ou vangloriar”. O raciocínio é pobre e equivocado. E carrega a crueldade dos defensores da ditadura. Imaginemos que alguém, depois da derrota de Hitler, viesse a público para dizer que o nazismo era simplesmente um fato histórico e que os fornos de Auschwitz não deveriam representar qualquer vergonha e nem deveriam ser motivo de vanglória.
A ditadura é um dado histórico que envergonha profundamente a nação brasileira. Diante dela, ninguém que professe a democracia e que seja fiel à história pode ficar indiferente e deixar de repudiá-la até para que nunca mais se repita. E os seus crimes devem e têm que ser apurados, como têm feito nossos irmãos latino-americanos, como o fizeram os democratas e comunistas que venceram a batalha contra o nazismo.
O ministro Nelson Jobim, que sempre teve lado nesse caso, disse que a Comissão da Verdade deveria também avaliar as ações desenvolvidas pelos “movimentos guerrilheiros”, como ele chamou. Decerto está querendo que os milhares de torturados, presos, e condenados sejam submetidos, quem sabe a novos julgamentos e a novas punições. O que as diversas organizações políticas de luta contra a ditadura faziam, não custa lembrar isso a um Jobim que um dia se disse constitucionalista, era exercer o direito de insurgência e resistência que é próprio do liberalismo moderno. Do liberalismo, insistamos. Talvez fosse o caso de lembrar a luta armada que determinou o surgimento dos EUA, para não darmos dezenas de outros exemplos. A ditadura rompeu com o Estado de Direito pela violência, de modo ilegal, e era um direito básico o da insurgência.
No raciocínio do general e de Jobim, caberia rever a história mundial recente, e julgar todos os que se envolveram no impressionante movimento anticolonial, que determinou a libertação de tantos países mundo afora, particularmente no território africano. O que se cobra, o que se tem feito em toda a América Latina é o julgamento dos que cometeram genocídios, dos que mataram covardemente pessoas na tortura, que fizeram desaparecer pessoas, e o exemplo mais recente é o de Rafael Videla, condenado à prisão perpétua na Argentina. A anistia, como determinou recentemente a OEA em relação ao Brasil, não alcança torturadores, contrariamente à opinião do STF.
Uma nação não pode sufocar a verdade. E nem pretender deixar de ajuizar todos os fatos históricos. Alguém poderia justificar a escravidão, a ignomínia da escravidão no Brasil? Não. Como não pode deixar de repudiar, de levantar todos os crimes cometidos pelos agentes da ditadura que torturaram e mataram pessoas. Só isso. Paulo Sérgio Pinheiro escreveu artigo recente no jornal Folha de S. Paulo (17.1.2011., p. 3) onde apropriadamente diz que o passado nunca está morto.
Mais: quanto a este assunto, nem passado é ainda. Ainda recuperando o que diz o ex-secretário de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso, cabe lembrar que o pai do general-presidente da ditadura, João Batista de Figueiredo, então deputado Euclydes Figueiredo, em 1946, requereu a criação de uma comissão de inquérito que examinasse os crimes do Estado Novo. A comissão, a primeira comissão da verdade, foi criada, mas não funcionou por falta de quorum – ou seja, não havia vontade política suficiente para fazê-la funcionar.
A Comissão da Verdade proposta pelo então presidente Lula, acolhendo sugestão do ministro Paulo Vannuchi, visa o esclarecimento histórico dos horrores praticados pela ditadura, situando tudo no contexto ampliado daquela circunstância histórica de triste memória. Não tem caráter de revanche. Não tem qualquer mandato judicial. Não há, ali, réus sendo julgados. Só pretende a verdade, não mais do que a verdade. A nós, e parafraseio Gramsci, só interessa única e exclusivamente a verdade. Esta Comissão, como também revela Paulo Sérgio Pinheiro, acolhe o melhor das 40 comissões da verdade no mundo, a indicar o quão ampla é, e o quanto tem sido normal o procedimento. Argentina, Chile, Bolívia, Peru, por exemplo, viveram essa experiência.
A pergunta que não quer calar é: quem tem medo da verdade?
8 comentários:
Trata-se de um caso delicado e que divide opiniões. Neste particular, o nosso dever enquanto cidadãos é buscar todos os meios possíveis para que a justiça seja feita.
Quantos torturados padeceram nas mãos de implacáveis torturadores do
Estado ou de guerrilheiros?
A verdade tem sim que ser dita. No entanto, também não encontro justificativa para ignorar os atos de tortura, contra culpados e inocentes, cometidos pelo outro lado. Sabemos que a esquerda também prendeu, torturou e matou. Nesse caso o que deve ser feito? isso deve ser ignorado?
E nos casos em que os torturadores estavam apenas cumprindo ordens? Devem eles ser condenados por estarem cumprindo com o seu papel e exercendo a função que lhes rendia fundos para prover seu próprio sustento e de sua família?
Creio que nada deve ser jogado para baixo do tapete e a cara dos culpados, sejam eles de direita ou de esquerda, deve ser mostrada! Mas, ainda assim, cada caso é um caso e deve ser analisado com prudência.
Enquanto Historiador tenho a obrigação de dizer que o senhor Emiliano José deveria ter mais cuidado quando profere algumas frases. Por exemplo, comparar fatos históricos distantes em termos de temporalidade é algo perigoso. A tortura no período ditatorial está inserida em um contexto específico, contexto este distinto do meio sócio-cultural em que a escravidão no Brasil se estabeleceu e desenvolveu. Atualmente, não há meios justificáveis para nenhum tipo de escravidão. No entanto, o contexto escravocrata brasileiro era outro e as percepções sociais e culturais eram distintas. Enfim, existem muitos registros que atestam que a escravidão para época era justificável e aceitável por grande parte da sociedade. Portanto, ditadura (1964-1985) é uma coisa e escravidão negra no Brasil é outra (nesse caso devemos considerar também que o autor não deixa claro de que escravidão está falando).
Oi, professor, meu nome é Luciano, blogueiro sujo que retornou a postar escritos há apenas 10 dias, estou aqui para divulgar meu blog e informar ao senhor que tem agora mais um seguidor e que coloquei o link de seu blog em minha lista. Se puder retribuir ou não, agradeço pela atenção. Até mais.
http://asarvoressaofaceisdeachar.blogspot.com/
Cumpadi, é verdade que o Sport tá devendo um búfulo a Zé Pilintra? Se for verdade, cumpadi, prometo dar um caminhão de búfalos, li esta noticia no Blog do Torcedor.Segundo o editor do referido blog, Pai Carlos disse isso a Geraldo Freire.
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Cumpadi Gilvan! Se o Pai Carlos disse, "têje dito"! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
A bronca é encontrar búfalos em quantidade suficiente! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Abs, cumpadi!
Luciano Mano, bom dia!
Esteja às ordens, cumpadi. O Terra Brasilis já está linkado ao seu excelente blog.
Grande abraço!
Caro prof. Jeferson, boa noite.
Concordo com vc quando afirma que o caso é delicado e que a justiça tenha que ser feita.
Concordo também com a ideia de que aquele agente público que foi torturado por guerrilheiros também tenha direito à justiça. Deixo claro com essas palavras que a justiça deva ser feita, também, ao AGENTE PÚBLICO que, cumprindo ordens superiores, prendeu um[a] insurgente e o[a] levou para interrogatório, em consonância com as normas do regime de exceção. Esse agente estava cumprindo ordens em obediência ao regime em vigor e não deve ser responzabilizado. Deste modo, se torturado tiver sido, que seja agraciado com a justiça. Isso é da tradição democrática.
Agora, quando tal AGENTE PÚBLICO faz o que está descrito nas páginas do relatório BRASIL: NUNCA MAIS, isto é, torturando da forma mais infame possível [aqui no Terra Brasilis há quatro postagens específicas sobre o assunto: http://profdiafonso.blogspot.com/2010/12/lei-de-anistia-de-1979-vale-para-quem.html], este agente público quebrou a "legalidade" do próprio regime a que estava servindo.
Este AGENTE PÚBLICO que estava, no "exercício" da função, provendo o sustento de sua família de forma vil e desumana, não estaria cumprindo o papel que lhe atribuíram quando de sua nomeação ou ingresso nos serviços próprios dos agentes do Estado. Negar isso é um tanto temerário...
No que diz respeito ao alerta feito ao jornalista e doutor José Emiliano, é bom que se esclareça que a leitura não aponta para uma comparação entre o regime autoritário e o sistema escravocrata como um molde histórico unficante, porquanto são, como bem frisado, "contextos distintos". O que José Emiliano sugere é que qualquer tipo de barbarização do ser humano deva ser rechaçada. Vale lembrar que ele cita outro contexto histórico: as atrocidades de Hitler e o Nazismo.
Cabe, por último, ressaltar que o fato de "a escravidão para época [ser] justificável e aceitável por grande parte da sociedade [da época]" não nos autoriza, com um olhar histórico ulterior, compactuar com as barbáries contra o ser humano.
Grande abraço e obrigado pelo comentário.
Saudações caro DiAfonso!
Conforme eu havia dito, trata-se de uma situação delicada e cada caso é um caso. Em consonância com o meu posicionamento, não encontro meios cabíveis que me permitam discordar de seus argumentos iniciais. Sendo assim, concordo com você quanto ao caso de quebra de legalidade. Afinal, crime é crime.
Já que citou o projeto "Brasil nunca mais", é interessante lembrar que ele, assim como o projeto "Brasil Sempre", deve ser analisado com cuidado. Tratam-se, visivelmente, de duas obras ideologicamente comprometidas e que devem ser observadas levando-se em consideração a o contexto e as condições históricas em que cada uma foi produzida.
Quanto ao alerta ao autor, não pretendo sugerir que ele tenha comparado estritamente as estruturas escravocratas e ditatóriais, “como um molde unificante”. O que pretendo é alertar para a necessidade de uma distinção entre cada uma das ações.
O que realmente acho é que a frase não foi bem empregada e pode gerar equívocos. A escravidão negra no Brasil possui seus traços peculiares, assim como as ações criminosas perpetradas a partir de iniciativas ditatoriais (1964-1985). Tratam-se de fenômenos distintos e que merecem um trato diferenciado.
Tentemos uma análise mais aprofundada do trecho em questão.
“Alguém poderia justificar a escravidão, a ignomínia da escravidão no Brasil?”
R: Não! É inconcebível justificar a escravidão hoje, com os olhos do presente.
E quanto ao período escravocrata, a escravidão era justificável para a população da época?
R: Se olharmos para o passado tentando buscar o olhar da época a perspectiva muda. Grande parte da sociedade da época via a escravidão negra como algo absolutamente normal.
E quanto aos crimes da ditadura, da forma como eram levados a cabo, eram justificáveis?
R: Pelo contrário, os crimes ditatoriais eram e são injustificáveis.
Quais são então os motivos que levaram o regime a adquirir grande aceitação popular? R: O que acontecia, na maioria dos casos, era o encobrimento das ações dolosas, fato este que impedia ações revoltosas de potencial ainda maior. Por esse e por outros motivos, para muitos, a ditadura deixou saudades.
Portanto, meu caro amigo, o que quero dizer é que uma coisa é justificar a escravidão (ontem e hoje) e outra coisa é justificar os crimes cometidos a partir de iniciativas ditatoriais.
Um abraço!
Olá, prof. Jeferson! Boa tarde!
Parabéns pela exposição! Dou-me por satisfeito com as suas colocações.
Bom poder dialogar [com ou sem divergências] com pessoas equilibradas como você.
Grande abraço!
ps. E o Capitão Mouro? rsrs
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