sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Literatura, Filosofia, Política e... Paixão

CHAMA INCONTIDA - CLARICE LISPECTOR

Clarice Lispector e Lúcio Cardoso

Por Teresa Montero [doutora em Literatura Brasileira pela PUC-RJ]

Foi na redação da Agência Nacional que a jovem jornalista Clarice Lispector entrou no mundo literário, pelas mãos de seu colega, o romancista e poeta Lúcio Cardoso, dotado de uma personalidade enigmática e sedutora.

Clarice não resistiu aos seus encantos e percebeu que Lúcio era um mundo no qual ela gostaria de viver. "Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de 'vida apaixonante'. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado."

A parceria amorosa não se concretizou, mas os laços de amizade possibilitaram a descoberta de inúmeras afinidades. Lúcio e Clarice eram daqueles tipos de autores que escreviam movidos por uma exigência íntima, da qual não podiam escapar. Para eles, viver e criar eram sinônimos.

Após a publicação de seu primeiro livro, Perto do coração, Clarice, recém-casada, mudou-se para a Europa com o marido diplomata. Nessa fase, a amizade sobreviveu por meio das cartas. Clarice falava do seu trabalho e pedia conselhos. Sempre atenta à publicação dos livros de Lúcio, gostava de comentar as suas impressões, mostrava-se uma leitora voraz e interessada.

Difícil precisar quem exerceu o papel de discípulo e quem o de mestre, e até que ponto as influências dessa relação repercutiram em seus trabalhos. Em todos os seus depoimentos, Clarice assumiu o papel de discípula, mas o que fica é a impressão de que a relação marcou o encontro de duas pessoas que se descobriram muito próximas no ver, no sentir e no viver.

Tanto que, ao falarem o que pensavam um do outro, os dois escolhiam a imagem do fogo. Dizia Lúcio: "em toda obra dessa grande escritora, alguma coisa íntima está sempre queimando: suas luzes nos chegam variadas e exatas, mas são luzes de um incêndio que está sendo continuamente elaborado por trás de sua contensão. Esse fogo é o segredo íntimo e derradeiro de Clarice."

Já Clarice, ao lembrar-se do amigo, depois de sua morte, escreveu numa crônica: "Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era sem limite para o seu galope." Essa busca incessante e ilimitada do sentido da vida, a coragem de colocarem toda a sua alma naquilo que escreveram, os uniu para sempre.

Revista Cult
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ELA, JUDIA; ELE, NAZISTA

Martin Heidegger e Hannah Arendt

Por Fabiano Curi [jornalista e professor universitário]

Uma das relações emocionalmente mais controversas entre intelectuais definitivos para o pensamento e a história do século passado foi a dos filósofos Martin Heidegger e Hannah Arendt. Os dois se conheceram na Universidade de Marburg, em 1924, quando ela era uma jovem estudante de 18 anos, e ele, um professor de destaque.

Um dos pensadores mais influentes do século 20, Heidegger ficou marcado também por sua ligação com o regime nazista, enquanto Arendt, judia, dedicou boa parte de sua importante obra ao estudo de regimes totalitários.

O engajamento político de Heidegger provocou reflexões muito sérias em Arendt, sobretudo no que diz respeito à tensão entre filosofia e política que orienta a tradição da filosofia política ocidental desde sua origem, com Platão. Por outro lado, e dado que ela nunca considerou o pensamento de Heidegger como intrinsecamente nazista, isso não lhe impediu de buscar inspiração em certos conceitos de Heidegger a fim de repensar as possibilidades da própria teoria política após a ruptura do fio da tradição.

O choque e a decepção com o engajamento de Heidegger foram importantes na definição da trajetória de seu pensamento. Até 1933, ela não tinha preocupações intelectuais a respeito da política. A partir de então, se posicionou por meio da total recusa do meio intelectual e do engajamento na ação direta de resistência ao nazismo.

Somente em 1946 ela voltaria a discutir questões estritamente filosóficas, ao publicar, já nos EUA, um texto introdutório sobe o pensamento existencial alemão. Nela, criticou o pensamento de Heidegger em Ser e tempo, acusando o conceito de autenticidade de solipsista e romântico. Em 1949 ela mudou sua avaliação, chegando a referir-se aos conceitos de Ser e tempo como contribuições decisivas para a renovação do pensamento político. A mudança certamente teve a ver com o reencontro e o reatar de laços entre os dois.

Isso não significa que Arendt dependesse intelectual e afetivamente de Heidegger. Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva do casal esteja contida em uma pequena nota que Arendt pretendia entregar a Heidegger como dedicatória ao volume de A condição humana, mas não o fez, em que ela dizia que havia "permanecido fiel e infiel" a ele, "ambas as coisas com amor".

Revista Cult

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CAMINHOS DA LIBERDADE - JEAN-PAUL SARTRE E SIMONE DE BEAUVOIR

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir

Por Luís Antônio Contatori Romano [doutor em Teoria Literária pela Unicamp]

Década de 1920, estudos de filosofia em Paris, Simone de Beauvoir, de formação católica, preservava relações de amizade com um grupo de estudantes certinho enquanto dirigia olhares a um estranho e hermético trio que encontrava por corredores e bibliotecas, composto por Jean-Paul Sartre, Paul Nizan e René Maheu - alunos irreverentes, de má reputação.

A amizade com Maheu foi a ponte para a futura união com Sartre. Um belo dia, Maheu entregou a Simone um desenho que Sartre lhe dedicara: "Leibniz no banho com as mônadas"; era um convite para a aproximação. Tempos depois, a jovem, cujo desejo de fuga do lar paterno era premente, entra no enevoado quarto de Sartre para estudar Leibniz com o trio de aspirantes a intelectuais. Findos os últimos exames, em 1928, Maheu retorna à província da casa paterna. Chega a vez de Sartre, que diz à Simone: "a partir de agora, tomo conta de você." Depois disso, ela passou a achar que todo o tempo que não passasse na companhia da brilhante inteligência de Sartre era tempo perdido.

Enquanto Simone se debatia com o que ainda lhe restava de formação espiritualista, Sartre buscava, por meio da literatura, uma outra forma de salvação: a sobrevida por meio da existência para o outro, seus leitores. O sentido de sobrevivência literária era para ele uma espécie de decalque da religião cristã. Assim, em seus conflitos íntimos, Simone e Sartre estavam mais próximos do que a aparência de moça bem-comportada e de rapaz iconoclasta poderia deixar transparecer.

A viagem é um traço marcante na vida de constantes descobertas que esse casal de intelectuais faz a respeito de si, a respeito do mundo, a respeito da função da escritura no mundo. Além de companheira de passeios de bicicleta pela França, Simone converteu-se em leitora crítica e interlocutora indispensável para a produção de toda a obra literária e filosófica de Sartre, enquanto este foi incansável incentivador, conselheiro técnico e temático da também extensa obra de Simone.

Embora nunca tenham vivido na mesma casa, e embora alguns de seus casos paralelos tenham durado anos, como de Simone com o escritor norte-americano Nelson Algren e o de Sartre com Dolores Vanetti, nenhum deles chegou a perturbar a estabilidade da união central. Apenas a morte do companheiro, em 1980, segundo Simone, marcaria a ruptura definitiva da união de 52 anos; diz ela no prefácio de A cerimônia do adeus: "você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma passagem."

Revista Cult

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