Quando os militares marcharam pelas ruas das principais cidades brasileiras, proclamando o golpe de estado, em 1964, foram recebidos de braços abertos pelas mulheres representantes da família e dos bons costumes da moral vigente. Se a presença da mulher foi decisiva na consolidação do golpe militar, ela não foi menor na luta contra a ditadura. Contrariando os princípios estabelecidos pela sociedade do seu tempo, elas abandonaram a vida burguesa para a qual foram criadas, deixaram as salas de aulas das faculdades, pegaram em armas e foram para as ruas das grandes cidades ou para o meio das selvas, combatendo os canhões e fuzis da repressão. Eram as mulheres guerrilheiras. A maioria delas eram jovens de pouco mais de vinte anos, nascidas nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial ou pouco tempo depois, filhas das ideologias da Guerra Fria. Desabrocharam na década de sessenta, divididas entre a revolução sexual, a liberação feminina e os ideais de esquerdas. Lutaram contra a repressão da sociedade do seu tempo e, fundamentalmente, contra a opressão de uma ditadura sanguinária.
Valentes, destemidas, bonitas, femininas, elas suscitaram as mais controversas opiniões, chegando a ser admiradas e respeitadas pelos seus algozes. Muitas sucumbiram às torturas ou tombaram executadas nas matas. Todas muito jovens, universitárias em sua maioria, vindas da militância do movimento estudantil. Depois da queda da UNE, com as prisões das suas lideranças no congresso de Ibiúna e o decreto do AI-5, elas caíram na clandestinidade. Restou, como um último fôlego, a luta armada.
Não perdiam o seu lado feminino, vivendo amores intensos com os companheiros de luta, muitas vezes transformados em maridos. Mas a grande paixão era a ideologia, o que lhes dava força para continuar quando, muitas vezes, viam o companheiro tombar à frente.
Despidas das vaidades femininas, elas foram para as ruas, assaltaram bancos, seqüestraram embaixadores, empunhando armas e coragem. Além das guerrilhas urbanas, dezesseis mulheres fizeram parte das operações da guerrilha do Araguaia. Doze foram executadas, duas foram presas logo no início e duas outras, grávidas, desertaram.
Mulheres guerrilheiras, com a sua tenacidade heróica, tornaram-se ícones e mitos da história recente do Brasil. Muitas foram friamente torturadas e executadas. Algumas sobreviveram, viram ruir a ditadura, as ideologias que defendiam, a mudança dos tempos. Outras desapareceram em valas comuns, sem nunca serem veladas pelas famílias. Outrora os nomes de algumas delas constavam em cartazes de “procura-se” espalhados pelo país, agora voltaram, sendo homenageadas com nomes de ruas ou de centros acadêmicos. O Brasil democrático deve respeito e admiração a essas mulheres, que mesmo errando, resistiram e gritaram, quando a ordem era silenciar e ajoelhar-se ante as truculências de um regime feito nas casernas militares, longe da participação do povo brasileiro.
Vera Sílvia, a Loura NoventaNascida em uma classe média alta do Rio de Janeiro, em 5 de fevereiro de 1948, Vera Sílvia Magalhães tinha tudo para desfrutar com tranqüilidade dos benefícios que lhe proporcionava o capitalismo burguês. Bonita, economicamente favorecida, inteligente, ela escolheu caminhar pela esquerda da vida, política e sociologicamente.
Aos onze anos foi presenteada por um tio, com o livro que trazia o “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engel. Precoce e ingenuamente, ela assumiu os princípios de ser socialista, distribuindo os seus pertences com os pobres à sua volta. Aos quinze anos, começou a sua militância política através do movimento estudantil. Aos dezenove já pertencia ao comitê central da Dissidência da Guanabara, surgida de um racha do PCB da Guanabara, futuramente chamado de Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Quanto mais envolvida na militância política contra a ditadura militar, Vera Sílvia rompia com a sua vida burguesa, deixando aos poucos, a família, os estudos e os antigos amigos. Quando deu por si, já estava a escrever a linha a ser seguida pelo seu partido, ao lado de Franklin Martins, rompendo com a linha pacifista de 1967, herdada do PCB, transformando-o em um partido militarista, radicalizado pelo esquerdismo e disposto a travar a luta armada contra o regime militar. Seguindo esta linha, foi treinada em táticas de guerrilha, por João Lopes Salgado, na mata da Tijuca. Surgia a valente guerrilheira, que de arma em punho, passou ao lado dos companheiros, a fazer ações de assaltos a supermercados e a bancos.
Nos assaltos praticados, Vera Sílvia aparecia usando uma peruca loura, atraindo para si as atenções, tida no imaginário popular como bela e perigosa. Lendas começaram a girar ao seu redor, passando a ser conhecida popularmente como a “Loura dos Assaltos", ou a “Loura 90”, uma referência ao mito de que usava nos assaltos, duas pistolas de calibre 45. A própria Vera Sílvia desfez, mais tarde, a lenda, afirmando que mal tinha um velho revólver 38, que de vez em quando falhava nos disparos.
Mas a ação que deu notoriedade a Vera Sílvia foi o seqüestro ao embaixador norte- americano, Charles Elbrick, em setembro de 1969. Sendo a única mulher a participar da ação, passou a ser a mais procurada e odiada pelo regime militar. O seqüestro resultou em uma grande derrota para a ditadura, que se viu obrigada a negociar com os guerrilheiros, trocando prisioneiros políticos pelo embaixador. A partir de então, os militares endureceram na caça aos guerrilheiros. Em fevereiro de 1970, Vera Sílvia sobreviveu a um cerco policial, mas viu o seu companheiro, José Roberto Spigner, a tombar na sua frente.
Em março de 1970, seis meses após o seqüestro do embaixador norte-americano, Vera Sílvia fazia uma panfletagem na favela do Jacarezinho, quando foi cercada e atingida com um tiro na cabeça. Foi levada para o Hospital Central do Exército (HCE), onde teve a sorte de ser atendida por um companheiro de luta, ali residente como médico. Para evitar que fosse torturada naquele dia, o médico simulou uma convulsão na paciente. No dia seguinte, ela foi levada pelos policiais, com a promessa de que “seria torturada como um homem, como Jesus Cristo”, alusão feita já que estavam na semana da Páscoa. Oito homens torturaram com perversos requintes de sadismo, à “Loura 90”, aplicando-lhe choques, pendurando-a no pau-de-arara, fustigando-lhe todas as partes do corpo. Debilitada e com uma hemorragia renal, ela foi levada para o hospital, em junho, sem poder andar. Foi nesta ocasião que aconteceu o seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, trocado mediante a libertação de 39 presos políticos. Vera Sílvia tinha o seu nome incluído na lista. De todos que ali estavam, ela foi a única que gerou constrangimentos ao regime militar, visto que estava tão debilitada, que não podia andar, sendo levada em uma cadeira de rodas até o avião que partiria para a cidade de Argel, tendo a bordo os 39 guerrilheiros rumo ao exílio. O caso de Vera Sílvia atraiu os holofotes internacionais, que ao ver o seu estado precário, numa cadeira de rodas e com 25 quilos a menos, confirmou a tortura nos calabouços da ditadura, veementemente negada pelos militares.
No exílio, Vera Sílvia chegou a seguir para Cuba, onde se tratou e fez treinamentos de guerrilhas. Perambulou pelo Chile, Argentina, Suécia e França, onde permaneceu até a Anistia, em 1979. Em 1973, Vera Lúcia deixou definitivamente a militância em organizações guerrilheiras. Costumava dizer que ela e os seus companheiros não amavam a democracia, amavam a revolução, lutavam pela ditadura do proletariado, não pela democracia.
Vera Sílvia morreu aos 59 anos, em 4 de dezembro de 2007, no Rio de Janeiro. Trazia seqüelas da tortura no corpo e na alma. Da beleza da guerrilheira trazia a determinação, movida por um semblante pesado e pela velha ternura obstinada. Em uma reportagem, disse sobre o período que foi guerrilheira: “Valeu. Só não valeu para quem morreu... O que havia de melhor na minha geração fez o que eu fiz.”
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