Francisco José Castilhos Karam
Professor da UFSC e Pesquisador do objETHOS
A eleição do palhaço Tiririca (Francisco Everardo Oliveira Silva) em 2010 como deputado federal por São Paulo, com mais de um milhão e 300 mil votos (a segunda maior votação da história daquela Casa), gerou “constatações” como a de que “estamos perdidos” e a de que o “parlamento chegou ao fundo do poço”. Ou ainda a de que, com um palhaço profissional eleito, estaríamos todos, como palhaços (no seu sentido mais pejorativo e não profissional), bem representados e de que Tiririca está exatamente onde deveria estar: no Parlamento brasileiro, ou mais especificamente, na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Mais tarde, já agora em fevereiro, com a indicação de Tiririca para integrar a Comissão de Educação e Cultura da Câmara, a perplexidade e as novas “constatações” reapareceram, tentando mostrar que ou era um “absurdo” o eleito estar ali - já que analfabeto ou semi-analfabeto -, ou que era, também, exatamente o lugar mais adequado a ele, uma vez que era a “cara” da educação e da cultura brasileiras.
Seguem alguns comentários. Existem parlamentares de altíssimo nível cultural, mas movidos por aspectos meramente ideológicos ou pessoais, que atendem ao próprio bolso particular. Eles formularam , votaram ou aprovaram projetos com danos à população em geral. Cultura - ou “alta cultura” - não é sinônimo de qualidade e de benefício social. A este aspecto, grande parte da mídia parece dar pouco caso. Deveria prestar mais atenção e dar mais destaque a isso.
Há, também, muitos parlamentares de excelente qualificação e que formulam e têm projetos aprovados e que trazem benefícios sociais a milhões de brasileiros. Parte da mídia, ao reforçar estereótipos de que o nível dos parlamentares é muito baixo, de que não trabalham, de que os políticos são todos corruptos, de que o povo vota em qualquer um, esquece-se, propositalmente ou por incompetência, outros aspectos que mereceriam maior esclarecimento: a de que vários parlamentares trabalham muito e estão efetivamente interessados em melhorar o país; a de que também trabalham exaustivamente ... embora não todos os eleitos; a de que o que aparece como visibilidade é apenas o plenário e não os incontáveis trabalhos e reuniões realizados nas comissões, que entram noite adentro; e de que, como resultado, saem também inúmeros projetos que beneficiam grandes grupos sociais ou a sociedade em geral.
Este duplo e diferente peso - maximizar os defeitos do Parlamento e da Política e minimizar os efeitos do trabalho dos eleitos - reduz a capacidade de entendimento da vida pública brasileira; dilui a ideia de representatividade; e empobrece - além de contribuir para a descrença - os valores da democracia e o ideal de participação pública. Os resultados contribuem para o que ocorre nas ruas: opiniões considerando que eleição é uma “bobagem”; justiça com as próprias mãos; preconceito que gera constantes violências... e o “vale-tudo” e a ideia de que o voto nada vale ou que se pode votar em qualquer um que tanto faz...
O papel de esclarecimento sobre o funcionamento do Parlamento e o destaque a parlamentares cultos que desenvolvem maus projetos e de parlamentares menos cultos ou mais “burros” que apoiam bons projetos poderia ajudar a democracia e a ideia de representação - tão desacreditada -, e cuja responsabilidade não cabe apenas ao desempenho de deputados e senadores, mas também a determinadas coberturas capengas, ausentes ou mal intencionadas.
É preciso, a meu ver, algumas outras observações: 1) se as pessoas elegeram Tiririca, por deboche ou por convicção, é preciso que haja respeito à decisão, desde que os trâmites regulamentares tenham sido observados; 2) se o "Povo” votou no bordão “vote em Tiririca, pior do que tá não fica”, tal imagem do parlamento e da política pode ser à imagem e semelhança deles, mas também à imagem e semelhança não apenas de Tiririca, mas do próprio povo e da mídia que não esclareceu suficientemente e contribui para estereótipos e preconceitos; 2) o fato de Tiririca, como palhaço, ser eleito com tal bordão, não esconde o fato de que renomados parlamentares, com currículos altamente qualificados, tomaram atitudes e defenderam projetos que submeteram a população e o país, em tempos próximos, à ditadura, à alta inflação, ao desemprego, à exclusão social; 3) Tiririca, diante de sua trajetória, está onde poderia estar, na Educação e Cultura, já que foi eleito e precisa ingressar em comissões. E, especificamente, na subcomissão que trata de Cultura. Em qual outra ele estaria mais adequado? À de Tributação e Finanças? À de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural? À de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio? À de Tecnologia e Informática?
O desempenho de Tiririca, como o de muitos outros, vai depender menos de sua condição cultural e de escolaridade e mais das intenções, do acompanhamento ideológico e político que fará a outros parlamentares, de alianças partidárias e das regras do Parlamento. Vamos ver para que lado penderá a balança. Pode ser que seja um desastre, pode ser que surpreenda.
Como os meios de comunicação massivos são a principal fonte de informação e aproveitamento de conteúdos culturais, é natural que a exposição de pessoas midiáticas, até chegar às celebridades, gerem curiosidade e interesse em torno de suas vidas. E, nisso, mais uma vez a mídia contribui para que os “conhecidos” levem vantagem na visibilidade pública, tal como ocorre, contemporaneamente, com a eleição de ídolos, levados a tal condição, além das possíveis qualidades profissionais e pela embalagem destas, também pela “aura” que está ao redor de tais pessoas, como é o caso de Romário e Tiririca, entre tantos outros. Isto não explica tudo mas acho que explica bastante. E eles devem estar exatamente nas comissões onde podem, por conhecimento ou experiência pessoal, contribuir de alguma forma, já que eleitos.
Assim, deve-se, a meu ver, ter menos preconceito e destacar negativamente parlamentares que, com alto grau de conhecimento, geram projetos que danificam o bem público comum; e destacar positivamente aqueles que, com baixa escolaridade, podem, eventual ou costumeiramente, contribuir com projetos que beneficiem o bem público comum. Cabe à mídia esclarecer, não só informar: escolher não apenas o pior para os relatos e comentários mas também informar sobre o melhor para a maioria. E acompanhar, de dentro das comissões e do parlamento em geral, o desdobramento das ações, projetos e seus significados, contextualizando-os, no sentido de desmanchar equívocos, informar de forma correta e controversa – como é sua função – e defender a essência do Parlamento . Ao defendê-la, defende-se a liberdade e a democracia, ou seja, defende-se a opção de voto. Quanto ao voto consciente, também cabe a ela ajudar a esclarecer para que o voto seja de convicção e não de circunstância ... ou moda ou anti-voto... Há uma parcela grande de responsabilidade midiática na eleição de Tiririca. Mas há parcela de responsabilidade ainda maior na condenação de antemão, sem acompanhar a essência do trabalho parlamentar, seus danos e benefícios e quem, realmente, são os responsáveis por estes, com alta ou baixa cultura...
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