“Era só o que faltava. Quererem uma estação de metrô aqui na esquina perto de onde eu moro! Pra quê? Pra facilitar a vida dessas empregadas, serventes, jardineiros, seguranças, que a gente faz o favor de contratar? Já não chega agora ter de contratar com carteira assinada, essa maldita invenção do Getúlio, junto com a CLT e o salário mínimo?"
Flávio Aguiar
Outro dia, ou melhor, outra noite aqui em Berlim, assestei meu rádio-telescópio para as coordenadas 23o. 32’ 51” sul e 46o. 38’ 10” oeste e ouvi o seguinte monólogo noturno, evidentemente um sonho, muito interessante:
“Ora, era só o que faltava. Quererem uma estação de metrô aqui na esquina perto de onde eu moro!
Pra quê? Pra facilitar a vida dessas empregadas, serventes, jardineiros, seguranças, que a gente faz o favor de contratar como empregados? Pra que eles caminhem menos no frio ou no calor, na chuva ou no sol de São Paulo? Querem moleza? Aqui, não!
Já não chega a gente agora ter de contratar com carteira assinada, essa maldita invenção do Getúlio, junto com a CLT e o salário mínimo?
Até que as coisas iam voltando a ser o que eram, com isso da gente desregulamentar tudo, acabar com essa malandragem de férias pagas, fim de semana remunerado, e tudo o mais que essa caterva de comunistas inventou. Depois do fim da Revolução de 64 era o que nos restava. Mas agora até isso está acabando. Ninguém mais quer trabalhar por 200 ou 300 milréis, ops, quero dizer, reais por mês.
Mas agora, essa de metrô! Sinceramente! Já não chega isso de agora empregada poder usar o elevador social? Mas aqui na minha casa não. Empregada só entra pela porta de serviço, eu dou um jeito. Porque se entrar pela porta social, sai de uma vez só pela de serviço e não volta! Quer dizer, saía e não voltava. Agora já não sei. Ela sai por qualquer porta e não volta, diz, se eu não a tratar direito, se não respeitar os seus direitos. Pelo menos é o que a minha mulher me diz. Acho até que ela, a minha mulher, já está amolecendo. É por causa dessa m... de Bolsa Família. Dar dinheiro pra pobre! Onde já se viu?! E desde quando pobre tem direitos? Tem que trabalhar isso sim, corja de vagabundo. Se ficou pobre é porque nasceu pra isso, ora!
Aí vem essa turma da defesa do transporte público. Imagine! Transporte público é coisa pra país da Europa, isso sim. Porque lá o público tem olho azul e cabelo loiro. Se tem olho escuro, pelo menos é italiano, que nem vovô. E fala língua de gente, não esse português errado daqui. Claro, na Europa, eu vi isso, os gente fina que nem nós vão à ópera de metrô. Com todos os trajes de gala. Mas é que lá tem sim a massa cheirosa, não essa fedida daqui. Lá Bodum é marca de cafeteira, não esse cheiro horrível de vagão de metrô na zona norte às seis da tarde aqui.
É verdade que mesmo lá as coisas pretejaram. Muito africano, muito árabe, muito latino, Deus que me perdoe! Mas felizmente já tem uns caras decididos em todo o canto, botando as coisas no lugar, expulsando cigano, fazendo campanha contra estrangeiro vagabundo, tem até uns que dão um cacete em estranja metido a besta. Ê bom tempo que a gente podia fazer isso por aqui! Só falta os policias de lá fazerem vista grossa que nem os daqui faziam.
Aqui, transporte público pra quê? Tirando naturalmente pra trazer os empregados pro trabalho e levar eles de volta depois. E chega, e sem folga. Quem nasceu pra sardinha não precisa abrir os braços. Até porque se abre os braços lá vem aquele fedor subindo pelas narinas.
Transporte público? Ora, espaço pouco, meu carrão primeiro, me desculpem. Vovô deu duro, enriqueceu, papai manteve a fortuna, e agora na hora de eu aproveitar vem essa gente querendo roubar espaço do meu carrão e botar metrô aqui na esquina! Era só o que faltava!”.
Eu bem que queria ouvir mais. Mas entrou uma interferência. Devia ser algum ônibus passando. Lá ou aqui.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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