domingo, 1 de maio de 2011

O bônus da doença e o ônus do povo


Andou circulando por aí a notícia de que a Agência Nacional de Saúde proibiu que os planos de saúde continuassem a usar a tática de oferecer “bônus” financeiros ou prêmios a médicos que restringissem os pedidos de exames para seus pacientes.

A prática – que os conselhos de medicina, a bem da verdade, rejeitam, por antiética – revela a incrível  desfaçatez  dos planos, deixando bem à mostra uma das maiores mazelas da nossa sociedade dita “de mercado” (para alguns, “democrática”...) .

Quando garoto, e mesmo no início da idade adulta, lembro-me bem dos grandes hospitais públicos que, no Rio de Janeiro, atendiam à população, gratuitamente e com eficiência. Havia o dos Comerciários, dos Bancários, e por aí iam... Não por acaso, essa era também a época da educação pública de excelência, com escolas do Governo que preparavam o alunado com a qualidade necessária para uma inserção digna na sociedade, ficando reservado ao âmbito  particular, com poucas exceções,  um conjunto de escolas pejorativamente reconhecidas como do tipo “pagou , passou”.  Impossível deixar de lembrar aqui os bancos escolares do Colégio Pedro II, de onde colhi minha visão do mundo através de aulas de cidadania e civilidade e onde aprendi os princípios básicos de ética e alteridade,  através dos valores que o seu maravilhoso corpo de professores sabia transmitir.

Saudosismo à parte, o fato é que Saúde e Educação eram geridas predominantemente pelo Estado, e  bem geridas.

Muita água passou debaixo dessa ponte, modificou-se o mundo, instauraram-se novos valores e, devagar mas sempre, a iniciativa particular foi tomando conta dessas esferas e, hoje, a qualidade na saúde e no ensino – quando existe, diga-se de passagem -   acaba sendo um privilégio de quem pode pagar, e muito bem, por esses “serviços”. Estudantes e pacientes são “clientes” (da mesma forma que o cidadão passou a ser “consumidor”...)

A perversidade do sistema em que vivemos  é óbvia, deixa marcas diárias. No caso da saúde, deixa marcas e deixa mortos... Todos conhecem a história de alguém que teve sérios problemas, às vezes fatais, porque “o plano não cobriu”, ou porque “estava dentro do prazo da carência”, ou porque  “atrasou no pagamento de prestação”... Todos convivem com o tipo de atendimento – impessoal , burocrático,  descompromissado – que uma parte ponderável da classe médica dedica aos conveniados que a procuram, por força da necessidade de atender a um número exagerado de “clientes” por dia, para compensar a baixíssima remuneração que lhes é destinada pelos planos de saúdes.  Todos sabem que um problema de saúde, hoje, é, antes de mais nada, um problema financeiro.

A persistir uma situação dessas – a premiação a médicos que restringem pedidos de exame – ela  estará  a exigir muito mais do que a eventual aplicação de multas cujo valor em nada interfere nos vultosos lucros auferidos pelos planos de saúde. A ética  requer  bem mais que isso. Se os particulares apregoam – e como ! – a sua extraordinária eficiência na gestão das coisas e das pessoas, uma prática assim deveria envergonhar os arautos do mercado da livre iniciativa. Para mim, as medidas teriam que ser bem mais drásticas do que eventuais reprimendas ou multas. Para mim, não pode existir, nesse nível, o descaso com o outro, que chega ao nível  de premiar ou remunerar ações pouco dignas.  Para mim, os que juraram as palavras de Hipócrates também deveriam cumprir  o que lhes cabe e, de forma impositiva, em um  corporativismo sadio, fazer valer  a força da classe.

Voltando à Agência Nacional de Saúde, fico aqui pensando que , mesmo diante de fatos desse gênero  – que, praticados em busca do lucro,  se repetem em outros âmbitos de desrespeito ao cidadão – ainda há quem se queixe, em nome de uma perversa tese da liberdade absoluta,  da ação regulatória e fiscalizadora do Estado...

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