Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
[“Pronominais”, Oswald de Andrade]
Quero hoje também, como o fez o Urariano, posicionar-me sobre a notícia de que o MEC teria distribuído um livro didático que estimularia os erros gramaticais. E, preliminarmente, devo dizer que, como professor da língua portuguesa, considero leviana e oportunista a vinculação desse assunto a um mais que suspeito proselitismo político. Quem não sabe do que estou falando, tente localizar a coluna do Merval Pereira no “Globo” do dia 17.05, ou a crônica do Arnaldo Jabor da mesma data, na CBN, ou o editorial do “Globo” do dia 18.05. Fica bem clara a orquestração que pretende, até, promover a aproximação entre esse fato e a forma peculiar de expressão do ex-presidente Lula, sutilmente construindo a tese de que é política do PT, na Educação, a instituição da ignorância gramatical...
Um outro esclarecimento é o de que pauto esse meu texto pelas notas de jornal a respeito da matéria e pelos diversos depoimentos de pessoas que, como eu, provavelmente não tiveram acesso ao livro como um todo, mas tão somente a uma informação deliberadamente descontextualizada. Mesmo assim, arrisco-me a dizer que é perversa a execração pública a que estão submetendo a autora do livro, o que se torna ainda mais lamentável quando tem o apoio de profissionais da área ou especialistas que, penso, deveriam posicionar-se com mais cuidado.
O que está em questão? O conceito de variante linguística, assunto a que toda boa gramática, hoje, dedica pelo menos um capítulo, sem que qualquer uma delas deixe de enfocar como básico o indispensável prestígio à língua-padrão, à norma culta, que jamais deixou de ser objeto maior dos estudos da nossa língua nas escolas.
As variantes linguísticas – variedades que uma língua assume nos planos histórico, geográfico, profissional, situacional ou social -, longe de traduzirem o empobrecimento do idioma, reafirmam sua pujança, seu dinamismo, sua versatilidade. E, nessa unidade na diversidade, todas têm o seu lugar, sem privilégios ou preconceitos. Quando se fala de linguagem “adequada ou inadequada”, e não de “certa ou errada”, está-se querendo vincular a sua produção a uma situação contextual. É o reconhecimento, por exemplo, de que, a um personagem como o Chico Bento, do Maurício de Souza, não se podem atribuir falas da norma culta, que ele não detém. Ou de que Luiz Gonzaga, pela mesma razão, na antológica “Asa Branca”, acaba dizendo “pra mim voltar pro meu sertão”. É a percepção de que – em nome de objetivos expressivos da comunicação – Mariza Monte pode dizer “beija eu”, Roberto Carlos pode misturar “tu” e “você”, atores de novelas de temática “italiana” podem usar uma linguagem macarrônica, ou mesmo os personagens desse terrível “Zorra Total” podem usar um linguajar próprio, não menos terrível, mas adequado aos propósitos...
Há quase 90 anos, Oswald de Andrade, ícone do movimento modernista, produziu o texto que coloquei como epígrafe, no qual, fiel ao ideário dessa escola literária, defendia a prevalência de uma colocação pronominal marcada pelo coloquialismo, não abonada pela gramática, em detrimento do que reza a norma culta. Os modernistas iam mais longe, propugnando pela aproximação entre o texto literário e a fala do povo.
A professora, em seu livro, certamente quis se referir a algo desse gênero. É leviandade, beira a perversidade, imaginar que pretendeu estimular o erro. Julgo, inclusive, indispensável chamar a atenção para o fato de que os exemplos “criticados” no livro situam-se no plano da oralidade, no plano do “poder dizer-se” e não no do “escrever”. Quando a chamada do Globo do dia 18.05 – em sua falsa cruzada educativa – diz que “Haddad defende livro, mas Enem exige norma culta”, é óbvio que está havendo manipulação dos fatos. O Enem exige, sim, a norma culta na redação, produção escrita, e disso não abre mão, nem deve, pois é a modalidade escrita da língua que perpetua a sua expressão-padrão. Mas, na sua prova objetiva, o Enem (como, aliás, a quase totalidade das atuais provas de vestibular) farta-se de propor questões que envolvem o reconhecimento das variantes linguísticas em seus diversos âmbitos, inclusive o mais popular, típico da oralidade. Afinal, todos nós – inclusive eu – utilizamos diariamente, e muito, o linguajar coloquial, popular, em situações de informalidade.
Temos problemas, sim, no estudo do Português, como no ensino de uma forma geral. E eles passam pelo Ministério da Educação e suas políticas. Não têm, porém, nada a ver com variantes linguísticas, assunto em que fico ao lado do mestre Evanildo Bechara – de cuja manifestação, neste momento , estou sentindo falta – quando diz que nós, os brasileiros, devemos, sem preconceitos, “ser poliglotas em nossa própria língua”, entendendo como válidas todas as variantes existentes, desde que adequadas aos contextos em que se produzem.
Nesse assunto, como em muitos, julgo que as notícias e os posicionamentos estão primando pela manipulação e não merecem o meu respeito. E falo como educador, professor de Português e cidadão.
Rodolpho Motta Lima
Advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ, com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Direto da Redação.
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