Do Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo - 09/03/1957
Estréia segunda-feira, no Teatro Natal, o “Auto da Compadecida”, do jovem autor Ariano Suassuna. Existe, com relação ao acontecimento, uma grande expectativa, porque a peça, quando encenada recentemente no Rio, obteve a medalha de ouro do I Festival Brasileiro de Teatro Amador, e a critica saudou o dramaturgo como uma das maiores revelações do nosso palco.
Ariano Suassuna tem 29 anos, sendo originario de Taperoá, na Paraiba, onde se passa a ação de “A compadecida”. Hermilo Borba Filho, diretor da montagem paulista, forneceu-nos as outras informações biograficas sobre Ariano Suassuna, que ele lançou no Teatro do Estudante de Pernambuco. Filho de ex-governador do seu Estado natal, leciona Estetica na Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, e Teatro no Colegio Estadual de Pernambuco, exercendo a critica no “Diario” daquela cidade. Formado em Direito em 1950, advogou durante dois anos, abandonando a profissão para dedicar-se ao teatro. Já conta em sua bagagem diversas peças: “Uma mulher vestida de Sol” (vencedora do Premio Nicolau Carlos Magno, do TEP), “Cantam as harpas de Sião”, “Os homens de barro”, “O arco desolado” (que mereceu o voto de Ruggero Jacobbi para o Premio Martins Penna, instituido pela Comissão do IV Centenario de S. Paulo), “O auto de João da Cruz” (que obteve o primeiro lugar em concurso promovido pela Secretaria da Educação de Pernambuco) e “O processo do Cristo Negro”. Juntamente com Hermilo, Ascenso Ferreira e Capiba, publicou o livro “E’ de Tororó”. Oriundo de Familia protestante, converteu-se ao catolicismo, durante uma enfermidade. Acrescenta Hermilo que Ariano Suassuna casou-se recentemente, é um grande contador de historias, entende de musica e pintura, faz poemas, já tentou escultura, estudou com afinco latim e grego para ler os classicos no original, e prestou neste ano os exames vestibulares de Filosofia. Devendo publicar a convite da Secretaria da Educação de Pernambuco e ao ensejo de seus dez anos de teatro, todas as peças, Ariano Suassuna pretende reescrevê-las para dar-lhes um carater mais brasileiro e um estilo “vivo, popular e forte”. Em carta ao autor de “A barca de ouro”, escreveu Ariano Suassuna que “estamos vivendo a epoca elisabeteana agora, estamos num tempo semelhante ao que produziu Molière, Gil Vicente, Shakespeare etc.”.
As indicações biograficas, sobretudo no tocante á crença religiosa e á visão do mundo contemporaneo (Ariano Suassuna aproxima o Nordeste de Florença e Roma renascentistas) introduzem-nos no universo dramatico de “A compadecida”, bem como do “Auto de João da Cruz” e “O arco desolado”, os textos de sua autoria que tivemos ensejo de ler. Trata-se, sem duvida, de um escritor teatral autentico de quem se pode esperar muito. E – aspecto que deve ser ressaltado em nossa literatura – trata-se de uma dramaturgia catolica, na melhor tradição que esse teatro fixou em todo o mundo, vindo das formas medievais, em que se assinalam os caracteres populares e folcloricos e uma religiosidade simples, sadia, irreverente e presidida pela Graça, com a condenação dos maus e a salvação dos bons. E’ certo que as numerosas lendas do Nordeste reunem os predicados que podem servir de base a um teatro popular e religioso, desde que passando pelo crivo artistico. Acrescente-se, ainda, que o jovem autor chama as suas obras “autos sacramentais”, genero levado á perfeição por Calderon de la Barca, cuja peça “La vida es sueño” se baseou, aliás, na mesma lenda polaca em que se inspirou “O arco desolado”.
Ariano Suassuna funde, em seus trabalhos, duas tendencias que se desenvolvem quase sempre isoladas em outros autores, e consegue assim um enriquecimento maior da sua materia-prima. Alia o espontaneo ao elaborado, o popular ao erudito, a linguagem comum ao estilo terso, o regional ao universal. A quase superstição das historias folcloricas atinge o vigor de uma religiosidade profunda, que pode espantar aos cultores de um catolicismo acomodaticio, mas responde ás exigencias daqueles que se conduzem por uma fé verdadeira. A nós, particularmente, que não suportamos os rugidos antipaticos de grande parte da literatura catolica moderna, comprazida em se lambuzar no lodo, para entrever, numa distancia inverossimil, uma redenção mazoquista – aceitamos, embora sem compartilhá-la, a crença reta de “A compadecida”, alimentada de amor efetivo e do melhor sentido que possa ter a palavra misericordia. O frade, que o bispo chama de debil mental, é o portador da sabedoria divina. Esse bispo, o padre e o sacristão venais serão castigados, enquanto o cangaceiro – instrumento da colera de Deus – será absorvido, por não ser responsavel pelo mal que pratica, nesse julgamento em que Jesus Cristo aparece sob as vestes do preto Manuel. João Grilo – mais um tipo da galeria brasileira do “heroi sem nenhum carater” – terá nova oportunidade de viver, e a aproveitará com a santidade inata das mãos vazias.
O “auto de João da Cruz” não é uma farsa, como “A compadecida”, mas um “drama sacramental”. Como inspiração, mostra o mesmo espirito religioso, na aventura faustiana do jovem carpinteiro que faz um acordo com o demonio para possuir os bens terrenos. O caminho para a danação é interrompido pelo aparecimento do anjo da guarda e do pai-peregrino, que, no juri final da peça, se identifica á figura divina. Aqui, mais uma vez, o movel da salvação é um cangaceiro, que havia há tempo evitado a morte de João, da Cruz e agora, num sinal de que a consciencia deste continua viva, recebe para fugir da policia o corcel que o demonio lhe presenteara. Diante da justiça, os puros levam sempre a melhor.
O tratamento de “O arco desolado” diferencia-se fundamentalmente do que o dramaturgo espanhol deu á lenda polaca. O Sigismundo de Calderon, sabendo que “la vida es sueño”, quer tornar a existencia um sonho bom. Contraria a predição sobre o seu nascimento, para instaurar um reino de justiça. O Sigismundo de Ariano Suassuna desencadeia de fato, quando sai da prisão, uma série de horrores. Vai purgar-se da possível bastardia no mundo, confiando-se de novo á prisão em que fôra criado. Com o seu sacrifício e o da jovem amante possibilita a reconciliação do pai e do tio, concluindo a peça sob um céu limpo, que lembra o de “Romeu e Julieta”.
"A forma de Ariano Suassuna corresponde aos designios de sua dramaturgia. Agora que vai reescrever “O arco desolado”, passando-se a historia numa fazenda do sertão, pretende quebrar-lhe a “unidade”, que a esfria num rigor literario pouco cenico. Os dois outros autos já assimilam a experiencia do teatro medieval, acolhendo a fecundante convenção segundo a qual cada episodio reclama o seu cenario. Não se trata da simultaneidade mas de uma liberdade absoluta de ações, trazendo, inclusive, o sobrenatural para a terra ou tornando o homem intimo da morada divina.
Em “A compadecida”, não fôsse deliberada a ingenuidade, estranhariamos o “primarismo” da satira: a historia do padra que benzeria o cachorro do major Antonio Morais mas não o da mulher do padeiro; as proezas de João Grilo para que a benção seja dada; a venda de um gato que descome dinheiro para substituir o cachorro morto; a carnificina praticada pelo cangaceiro e a sua estulticia, acreditando que poderá ressuscitar ao som de uma gaita. A trama torna-se verossimil teatralmente porque abdica de um realismo verista em troca de uma outra realidade, feita de sobrenatural e de poesia. Na trama, “o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solercia”, e para, sob a verve comica tirar também as ilações, quer esteticas quer morais.
Tudo indica em Ariano Suassuna o apaixonado do primitivo, o participante da crença cosmica medieval. Ele renega mesmo o teatro moderno, dessorado na disciplina intelectualista. Conhecemos o valor estetico de certos arcaismos, sobretudo quando advogam a autenticidade perdida. Ariano Suassuna descobriu um veio fertil, que poderá alimentar grande numero de peças, na mesma linha de “A compadecida”. A obra definitiva virá, porém – auguramos – quando ele aperfeiçoar o instrumento tecnico e sentir o mundo com um coração moderno.
Sábato Magaldi
O PALCO NO PAPEL
Mineiro de Belo Horizonte, onde nasceu no dia 9 de maio de 1927, Sábato Antônio Magaldi já aparecia como titular da seção "Teatro" do SL no projeto do caderno elaborado por Antonio Candido. Em 1953, viera para São Paulo, a convite de Alfredo Mesquita, iniciando a carreira de docente na Escola de Arte Dramática, onde criaria, em 1962, a disciplina de História do Teatro Brasileiro. Em 94 foi eleito para a cadeira 24 da Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre outros, Panorama do Teatro Brasileiro (1962) e Artur Azevedo (2009).
Gilberto Cruvinel
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