domingo, 19 de junho de 2011

Negar! Não aceitar! Dizer NÃO!

Uri Avnery*   

“Reconhecer o caráter judeu do estado de Israel é o último refúgio dos canalhas”.   “Nem em dez, nem em dez mil anos, o Parlamento poderá aprovar leis propostas por católicos ou budistas ou islâmicos”.  “O que significa “judeu”? Uma nacionalidade? Uma religião? Uma tribo?  Quem é o “povo judeu”?  “A exigência de que os palestinos reconheçam Israel como “o estado judeu” ou como “o estado-nação do povo judeu” é irracional, ridícula, absurda”.



Estou farto desse absurdo de exigir que Israel seja reconhecida como “estado judeu”. É exigência baseada numa coleção de frases ocas e definições vagas, sem qualquer conteúdo real. Serve a vários objetivos, quase todos nefastos.


Binyamin Netanyahu usa a coisa como truque para impedir o estabelecimento do estado palestino.
Essa semana, declarou que o conflito não tem solução. Por quê? Porque os palestinos se negam a reconhecer etc. etc. etc.

 Quatro membros direitistas do Parlamento acabam de apresentar projeto de lei que dá poderes ao governo para recusar registro de novas ONGs e para dissolver as que existam, se “negarem o caráter judeu do estado”. 

Essa nova lei é apenas mais uma de uma série que visa a roubar direitos dos cidadãos árabes e da esquerda. 

Se o falecido Dr. Samuel Johnson vivesse na Israel de hoje, poria outras palavras na sua famosa frase sobre o patriotismo: “Reconhecer o caráter judeu do estado de Israel é o último refúgio dos canalhas”. 


Na fala dos israelenses de hoje, negar o “caráter judeu” do estado equivale ao maior de todos os pecados políticos: pretender que Israel seja “estado de todos os seus cidadãos”.

A ouvidos estrangeiros, talvez soe estranho. Numa democracia, o estado, evidentemente, pertence a todos os seus cidadãos. Nos EUA, é afirmativa obviamente  verdadeira. Em Israel, se você disser que o estado pertence a todos os cidadãos israelenses, estará perigosamente próximo de um ato de traição. (O mesmo vale para os tão alardeados “valores ‘comuns’” dos israelenses.) 

De fato, Israel é, sim, estado de todos os seus cidadãos. Todos os israelenses adultos – e só eles – têm o direito de votar para eleger membros do Parlamento. O Parlamento indica o governo e determina as leis. Há, aprovadas, muitas leis que declaram que Israel é “estado judeu e democrático”.
Nem em dez nem em dez mil anos, o Parlamento poderá aprovar leis propostas por católicos ou budistas ou islâmicos.
Numa democracia, quem decide são os cidadãos. Os cidadãos são soberanos. Democracia não é fórmula verbal oca.

 Mas... que fórmula? – alguém poderia perguntar.

O Parlamento de Israel aprova leis que contêm a expressão “estado judeu e democrático”. Mas essa não é a única definição do estado de Israel que aparece nas leis israelenses. Longe disso! 

A definição mais frequentemente usada é “estado judeu”. Mas não basta para Netanyahu & Co., que fala de um “estado-nação do povo judeu”, expressão que cheira a século 19. E “estado do povo judeu” também é muito popular. 

O único traço que todas essas expressões-griffe têm em comum é que todas são perfeitamente vagas. O que significa “judeu”? Uma nacionalidade? Uma religião? Uma tribo? Quem é o “povo judeu”? Ou, expressão ainda mais vaga, “a nação judaica”? Será que se incluem na definição os deputados e senadores que propõem e aprovam as leis dos EUA? Ou as legiões de judeus que comandam as políticas dos EUA para o Oriente Médio? Que país o judeu embaixador do Reino Unido em Telavive representa?  

As cortes brigam ininterruptamente com a questão: onde está a fronteira entre os adjetivos “judeu” e “democrático”? O que significa “democrático”, nesse contexto? Poderia um estado “judeu” ser realmente “democrático” – ou, perguntado de outro modo: algum estado “democrático” será realmente “judeu”? Todas as respostas extraídas de sábios, de juízes de renome, de afamados professores sobre essas questões são capengas, ou, como se diz em hebraico: ‘têm pernas de galinha’.  

VOLTEMOS ÀS ORIGENS: o livro escrito em alemão por Theodor Herzl, pai fundador do sionismo, publicado em 1896. Lá se fala de “Der Judenstaat”.

Infelizmente, essa palavra alemã é intraduzível. Em geral, é apresentada em inglês como “The Jewish State” [O estado judeu] ou “The State of the Jews” [O estado dos judeus]. Todas essas traduções são erradas. A melhor aproximação possível seria algo como “The Jewstate” [talvez “estado judeuzoso”, em português[1]? (NTs)]. 

A palavra soa antissemita, e não por acaso. Talvez surpreenda muita gente, mas a palavra em alemão não foi inventada por Herzl. Foi usada pela primeira vez por um aristocrata prussiano de nome pomposo – Friedrich August Ludwig von der Marwitz –, que morreu 23 anos antes de Herzl nascer. E já era dedicado antissemita, muito antes que outro alemão inventasse a palavra “antissemitismo” – manifestação da riqueza do espírito alemão.

Marwitz, general ultraconservador, rejeitava todas as reformas liberais que se discutiam em seu tempo. Em 1811, disse à nação que aquelas reformas fariam da Prússia um “Judenstaat”, um estado judeuzoso. Nunca disse que os judeus seriam maioria na Prússia, Deus nos livre, mas, sim, que os agiotas e outros comerciantes judeus corromperiam o caráter nacional e destruiriam as antigas virtudes prussianas.  

Herzl, ele próprio, nunca sonhou com estado que pertencesse a todos os judeus do mundo. Antes, exatamente o contrário disso! Para ele, todos os verdadeiros judeus viajariam para o estado judeuzoso (fosse na Argentina ou na Palestina, ele ainda não resolvera). E só os que viajassem para lá – exclusivamente esses – continuariam, dali em diante a ser “judeus”. Todos os demais que não emigrassem seriam assimilados nos países onde estivessem e, assim, deixariam completamente de ser judeus. 
Muito, muito, muito diferente, da noção de um “estado-nação para o povo judeu” acalentada hoje por muitos sionistas, inclusive os milhões de sionistas que jamais cogitaram de imigrar para Israel. 

Quando menino, participei de dúzias de manifestações contra o governo britânico na Palestina. Em todas elas, cantávamos a plenos pulmões “Imigração livre! Estado hebraico!” Nunca, nenhuma vez, que me lembre, alguém fez algum tipo de manifestação a favor de algum “estado judeu”.

Nada de estranho nisso. Sem qualquer lei ou decreto, havia diferença bem clara entre nós (judeus que falávamos hebraico na Palestina) e os judeus da Diáspora. Para alguns, essa diferença pode ter chegado a ter traços de ideologia, mas para a maioria da população era simples expressão da realidade: agricultura hebraica e tradição judaica; movimento clandestino hebreu e religião judaica; kibbutz hebreu e Shtetl judaico. Yishuv (a nova comunidade de judeus recém chegados à região) hebraica e a diáspora judaica. Naquele momento, ser chamado de “judeu da diáspora” era o pior dos insultos! 

Para nós, naquele momento, nada havia de antissionismo na ‘classificação’. Era o contrário: o sionismo queria inventar uma velha-nova nação na região de Eretz Israel  (expressão que, em hebraico, equivale a “Palestina”), e essa nação seria, evidentemente, diferente do que eram os judeus no resto do mundo. Foi o Holocausto, com o descomunal impacto emocional que teve, que alterou todos os significados das palavras que então se usavam.

E como surgiu a fórmula “estado judeu”? Em 1917, no meio da I Guerra Mundial, o governo britânico lançou a chamada “Declaração Balfour”, na qual se afirmava a posição “do Governo de Sua Majestade a favor do estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu...” 

Cada palavra, ali, foi cuidadosamente selecionada, depois de meses de negociações com líderes sionistas. Um dos principais objetivos dos britânicos era atrair judeus norte-americanos e russos para a causa dos Aliados. A Rússia revolucionária já se afastava da guerra, e era essencial que os EUA isolacionistas entrassem na guerra. (Por falar nisso: os britânicos rejeitaram as palavras “transformação da Palestina em lar nacional para o povo judeu” e insistiram em escrever “na Palestina”  – já prevendo a partição do país.)

Em 1947, a ONU decidiu dividir a Palestina entre as populações árabe e judaica. Isso nada declarava sobre as características dos dois futuros estados – apenas se usaram as definições então usadas pelos dois grupos em disputa. Cerca de 40% da população que já vivia no território alocado para os estado “judeu” era árabe.

 Os que defendiam o “estado judeu” exploraram ao máximo a sentença na “Declaração do Estabelecimento do Estado de Israel” (chamada em geral de “Declaração de Independência”) que realmente inclui as palavras “estado judeu”. Depois de citar a resolução da ONU que fala de um estado judeu e de um estado árabe, a Declaração prossegue: “Nesses termos, nós (...) conforme a resolução da Assembléia Geral da ONU, declaramos o estabelecimento de um estado judeu na Eretz Israel, que se chamará Estado de Israel.” Essa frase nada diz, absolutamente, sobre o caráter do novo estado e o contexto é puramente formal.            


Um dos parágrafos da Declaração (na versão original em hebraico) fala sobre o “povo hebreu”: “Estendemos as mãos para todos os estados vizinhos e seus povos, em oferenda de paz e boa vizinhança, e apelamos a eles para que constituam laços de cooperação e mútua ajuda com o povo hebreu independente nessa terra.” Essa sentença aparece flagrantemente adulterada na versão oficial em inglês, que converteu as palavras finais em “com o povo judeu soberano instalado em sua própria terra”. 

De fato, teria sido praticamente impossível alcançar qualquer acordo, fossem quais fossem os termos ideológicos, uma vez que a declaração foi assinada pelos líderes de todos os grupos e facções, de antissionistas ultraortodoxos ao Partido Comunista orientado por Moscou.

Qualquer discussão sobre estado judeu leva inevitavelmente à questão: O que são os judeus, uma nação ou uma religião?

A doutrina oficial israelense diz que “judeu” é simultaneamente definição nacional e religiosa. O coletivo judeu, diferente de todos os demais, é ao mesmo tempo coletivo nacional e religioso. Conosco, nação e religião são uma e a mesma coisa. Mas a única porta de acesso a esse coletivo é religiosa. Não há porta nacional. 

Centenas de milhares de imigrantes russos não judeus imigraram para Israel graças à Lei do Retorno com parentes judeus. A lei é muito ampla. Para ser atraente para os judeus, a lei autoriza a vinda de parentes não judeus mesmo distantes, incluindo, por exemplo, a esposa do neto de um judeu. Muitos desses não judeus querem ser judeus para serem considerados plenos israelenses, mas, por mais que tenham tentado, nunca conseguiram ser aceitos. Sob a lei israelense, judeu é pessoa “nascida de mãe judaica ou convertida, que adote a religião da mãe.” Essa é definição puramente religiosa. A lei judaica diz que para esse efeito, só a mãe, não o pai, conta. 

É extremamente difícil ser judeu convertido em Israel. Os rabinos exigem que o convertido cumpra todos os 613 mandamentos da religião judaica – que só poucos israelenses reconhecidos cumprem. Mas ninguém pode, por outra via, ser membro oficial reconhecido da “nação” judaica. Nos EUA, as pessoas tornam-se parte da nação norte-americana quando aceitam a cidadania. Nada disso existe em Israel.

Vivemos hoje em Israel em luta sobre exatamente isso. Alguns israelenses querem que Israel seja estado israelense, pertencente ao povo israelense, um “estado de todos os seus cidadãos” de verdade. Alguns querem impor aos demais a lei religioso supostamente fixada por Deus para todos os tempos, no monte Sinai, há cerca de 3.200 anos, e a abolir todas as leis diferentes dessa aprovadas pelo Parlamento democraticamente eleito. Muitos não querem mudar coisa alguma.

Mas como, pelo amor de Deus (desculpem!) isso teria algo a ver com os palestinos? Ou com os islandeses, por exemplo? 

A exigência de que os palestinos reconheçam Israel como “o estado judeu” ou como “o estado-nação do povo judeu” é irracional, ridícula, absurda.

 Como diriam os britânicos, “it’s none of their bloody business [não tem nada a ver com eles!]. Equivale a intromissão em assuntos internos de outro país.

Mas um amigo meu sugeriu uma solução simples para o imbróglio: basta o Parlamento de Israel mudar o nome do país para algo como “República Judaica de Israel”; isso feito, qualquer acordo de paz entre Israel e o Estado Árabe da Palestina implicará necessariamente o tal reconhecimento. 

Assim, Israel estará afinal reunido ao estado com o qual mais se parece hoje: a República Islâmica do Paquistão, que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo que Israel, depois da divisão da Índia, depois de massacre mútuo e horrendo, depois de criado gigantesco problema de refugiados e com fronteira em guerra perpétua, na Caxemira. E, sim, claro, com a bomba atômica.



A comparação chocará muitos israelenses. Como? Nós? Iguais a um estado teocrático? Estamos cada vez mais próximos do modelo paquistanês e mais distantes do americano? 

Mas... que diabo! Basta negar, renegar, dizer NÃO! 

[1] Em português, o sufixo “-oso”, que aparece em “bondoso”, “generoso”, “carinhoso”, “prazeroso”, acrescenta ao radical ao qual se una traços semânticos de “abundância”, “grande quantidade”. Assim como “bondoso” designa alguém cheio de bondades, e “generoso” significa alguém com muita generosidade, um estado judeuzoso bem pode significar, por analogia, estado de muitos judeus. O significado da palavra em alemão parece andar nessa direção. A estranheza que cause o adjetivo neológico judeuzoso parece ser insuperável, mas não brota da neologia e, sim, da absoluta incompatibilidade que, na consciência ocidental contemporânea há, necessariamente, entre estado e religião (NTs).

Uri avnery, Gush Shalom [Bloco daPaz],Israel 

Tradução Coletivo Vila Vudu

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