quarta-feira, 22 de junho de 2011

No Tocantins, o medo de estar marcado para morrer

Todos sabemos que o ímpeto estatal para diminuir a violência na região de fronteira agrícola amazônica passará assim que outras pautas ocuparem o tempo dos jornalistas nos veículos de comunicação – a despeito do trabalho dedicado de alguns servidores públicos que se arriscam para efetivar as leis mesmo sem o devido apoio. Às vezes, isso ocorre mais rapidamente que o esfriamento dos corpos dos trabalhadores rurais abatidos feito bicho de caça ao resistir à expansão agropecuária e extrativista sobre suas terras.

Depois da morte do casal de extrativistas José Cláudio e Maria, em Nova Ipixuna (PA), as atenções se voltaram para os conflitos agrários no Pará. Mas as desgraças não se resumem a esse Estado – no que pese o pessoal de lá parecer se esforçar nesse sentido. No Projeto de Assentamento Santo Antônio-Bom Sossego e no Acampamento Vitória, em Palmeirante (TO), por exemplo, famílias sofrem com ações de pistoleiros, ameaças, incêndio de casas e roças e até assassinatos, como foi o caso do trabalhador Gabriel Vicente de Souza Filho, morto em outubro do ano passado. Histórias de pessoas que não existem simplesmente porque não entram nas preocupações da opinião pública.

Na última quarta-feira (15), o barracão onde aconteceu uma reunião com famílias do Projeto de Assentamento foi incendiado. Nos dois primeiros dias do mês de junho, as famílias haviam relatado à Comissão Pastoral da Terra que ouviram disparos de arma de fogo no mesmo local. Segundo os assentados, um grupo de oito pistoleiros armados estaria instalado na sede de uma fazenda vizinha. Cinco trabalhadores estão marcados para morrer – anote o nome deles: Noginel Batista Vieira, Valdeni da Silva Medeiros, Raimundo Nonato, José Valdir Muniz e Divino de Jesus Vieira.

Isso sem contar Silvano Lima Rezende, liderança da CPT, que vem recebendo ameças por dar apoio aos assentados e acampados. Reproduzo, abaixo, entrevista concedida por ele à jornalista Bianca Pyl, aqui da Repórter Brasil:

Os bispos do Tocantins divulgaram carta denunciando recentes ameaças em duas áreas no município de Palmeirante, norte do Estado. Qual a situação hoje?


O Assentamento está situado aproximadamente a 40 quilômetros da cidade de Colinas do Tocantins, na TO-335, lado esquerdo. O Acampamento Vitória se localiza no km 33, margem direita da mesma rodovia. Dezenove famílias do acampamento reivindicam junto ao Incra a vistoria da Fazenda Santo Reis, conhecida popularmente por fazenda “Brejão”. Nessas áreas, já denunciadas várias vezes, surgiram novas ameaças de morte contra trabalhadores rurais.

A área que é hoje o Assentamento Santo Antônio-Bom Sossego foi grilada por três fazendeiros. Por ser área da União, em 2003, o Incra criou o assentamento que comportaria 19 famílias. Em 2005, famílias sem-terra ocuparam a área. O Incra, porém, inexplicavelmente, acabou reduzindo o número de famílias a serem assentadas para nove, por um acordo “verbal” com os ditos “fazendeiros”, que ficaram com a área restante onde deveriam ser assentadas as outras 10 famílias. Um dos beneficiados é Waldemar Bento da Rocha.

Em 2010, os trabalhadores e a CPT denunciaram a exploração de madeira da reserva legal do assentamento, articulada pelos grileiros, pistoleiros e madeireiros da região. Em decorrência disso, a polícia militar e o Naturatins apreenderam equipamentos, veículo e madeira derrubada.

Em outubro de 2010, pistoleiros atearam fogo em barracos das famílias ocupantes. Em dezembro, pistoleiros ainda efetuaram disparos por sobre os barracos de palha e lona do Acampamento Vitória. A polícia militar foi acionada e encontrou cápsulas de arma de fogo nas proximidades do acampamento.

Todos esses fatos, intimidações e ameaças foram denunciados na delegacia de Palmeirante e encaminhados à Superintendência do Incra (TO), à Ouvidoria Agrária Nacional e ao Ministério Público Federal do Tocantins.

Desde abril deste ano, oito homens perigosos ficam na sede de um dos grileiros, fazendo ameaças à famílias, dizendo que vão limpar a área. Dá um sentimento de impotência muito grande porque fazemos denúncias e nada, não tem responsabilização dos culpados e nem ação das autoridades.

Queremos fazer uma denúncia pública para a Secretaria de Direitos Humanos para pedir proteção. Estamos em situação de risco, eu recebo ameaças por telefone e recados. O fazendeiro Paulo Freitas, acusado de assassinar o Gabriel já ligou algumas vezes para mim. No dia 3 de junho registrei um Boletim de Ocorrência. Daí começou uma série de ligações de números privativos para me intimidar. 



Uma das áreas em conflito é um assentamento (PA Santo Antonio), não uma ocupação. Como isso acontece? Qual o posicionamento do Incra?


Em audiência junto ao Ministério Público Federal, Ouvidoria Agrária Nacional e Regional, CPT e representantes dos posseiros, no dia 17 de novembro do ano passado, o Incra se comprometeu a entrar com ação contra os 3 grileiros e regularizar as 10 famílias que faltam. O juiz entendeu que é área da União com projeto de assentamento. 

Porém não teve nenhuma providência ainda. A justificativa do Incra para a demora é o recesso de final de ano, a transição do governo federal e a falta de recursos por conta dos cortes. Nós soubemos que em fevereiro deste ano, a Superintendência do Incra fez o pedido ao Ministério do Desenvolvimento Agrário [de verba para atender a demanda] e desde março o dinheiro está na conta do Incra. Eu soube que hoje [quinta-feira, 16] está sendo feita a notificação para os grileiros para se retirarem da terra.

A morosidade atrapalha e dá brecha para as ameaças e conflitos com pessoas armadas. Um dos tiros passou próximo de uma das crianças. As mulheres e as crianças estão muito assustadas porque muitas vão a pé para a escola, andam cerca de 3 km. 

Hoje o pessoal tem arroz, feijão, farinha, mesmo diante do conflito esse pessoal tem o mínimo para sobreviver e eles não têm pra onde ir. Precisam da terra. Eles têm ciência que não têm pra onde ir. E se alguém chegar a ser assassinado, nós responsabilizaremos o Incra porque esse local já era assentamento, terra da união, era para tudo estar certinho já.

Como o Estado tem agido para coibir esse tipo de violência?


A única coisa de concreto é um encaminhamento da Ouvidoria Agrária comunicando as autoridades estaduais para que tomem providências. Mas não temos ação concreta, segurança para as famílias. A Secretaria de Direitos Humanos só priorizou Pará e Rondônia. Tocantins está fora do foco da proteção.



Como estão as investigações do assassinato do trabalhado Gabriel Vicente de Souza?


As últimas notícias que tivemos é que não houve prisões. Não sabemos nem se as investigações estão andando mesmo. O principal acusado, o fazendeiro Paulo Freitas, está respondendo em liberdade por ser réu primário. E os dois pistoleiros estão foragidos, não se apresentaram à Justiça, como fez Paulo. O Ministério Público Estadual não tinha oferecido denúncia até 5 de maio. A Ouvidoria Agrária está ciente e estamos cobrando. Na reunião de ontem (15) surgiu a proposta de marcar uma audiência com o promotor de Filadélfia (TO) para conversar sobre o caso e dar explicação para as famílias.



Qual a atuação da CPT nesses casos? Você sofre algum tipo de ameaça por conta dela?


Nesses casos nós temos o papel de orientar as famílias de como proceder. Informar e formar as famílias e mantê-las atualizadas. Ao mesmo tempo, somos mediadores para fazer pressão para que as autoridades sejam mais céleres. Nós buscamos fortalecer a luta, dar esperança, para dar condição mínima para as famílias resistirem e continuar a caminhada, que é difícil.

Em alguns casos, principalmente de despejos, contribuímos juridicamente. Temos uma parceria com um escritório de advocacia.

Além de fazer este trabalho, estamos juntos com as famílias e acabamos por dar publicidade à causa, usando os meios de comunicação, acabamos mais expostos e não tem jeito, sofremos ameaças sim, recebemos ligações estranhas, recebemos recados diretos. Se o Estado fosse operante e eficiente provavelmente teríamos uma menor participação, mas acabamos preenchendo esta lacuna. Trabalho árduo e desigual, mas continuamos acreditando.



A partir do assassinato de Zé Claudio e Maria, no Pará, o tema da violência no campo ganhou destaque na mídia nacional. Você acha que há uma escalada de violência ou a situação apenas ganhou projeção?

A avaliação que fazemos é que existe um modelo de desenvolvimento adotado no país, atrelado ao agronegócio, que por sua vez tem por objetivo avançar na produção em alta escala, como soja, eucalipto, pecuária, cana, e isso tem efeito nos pequenos produtores.

Nossa região tem muita terra pública da União, 62% de Palmeirante são terras da União e isso deveria ir para a Reforma Agrária e isso não é feito. É mais importante deixar a soja avançar, são diversos interesses econômicos envolvidos visando o lucro. E tudo isso gera uma situação conflituosa porque pessoas que cultivam a terra entram em embate com esse modelo de desenvolvimento, as famílias pobres, sem acesso a políticas públicas que teimam e resistem em suas terras para garantir o mínimo.

Tem uma diferença muito grande entre quem quer preservar a floresta e o cerrado e quem quer lucrar com a sua destruição. O Banco do Brasil, da Amazônia, BNDES acaba emprestando dinheiro pra isso [desmatamento].

O agronegócio vem como rolo compressor e aí acontecem tragédias. As autoridades agem como se esses conflitos fossem casos isolados, mas não é. Quando a tragédia já ocorreu, vem o Estado e diz que se fará presente. Mais trabalhadores terão que morrer para o Estado repensar sua forma de intervenção? O Poder Judiciário tem uma visão conservadora e reacionária, pautada pelo lado economicista, e com isso as ações [movidas na Justiça] são intermináveis.

Os conflitos agrários no Brasil, de uma maneira geral, têm momentos de ápices. Mas tudo isso ocorre diante da falta de ação do Estado.

Por que a região que inclui Pará, Tocantins e Maranhão é tão violenta?


A violência se instala pela falta de desenvolvimento local, uma lógica que expulsa as famílias. A grande questão é a concentração de terras e a falta de investimento em iniciativas como a Economia Solidária e a agroecologia, em que as famílias são protagonistas da mudança.



Há motivos para continuar na luta, mesmo diante das ameaças e do cenário político?


Mesmo diante dessa falta de motivação, existe uma grande expectativa de transformação. Nós nos frustramos muito, mas mesmo diante disso, nós temos companheiros no Brasil todo que nos apóiam. A CPT tem se mantido fiel a esse projeto de caminhar ao lado das comunidades que não têm vez e não têm voz.

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