A idéia de instituir uma lei de “silêncio eterno” para certos documentos oficiais foi lançada sem muito sucesso. As verdade são, ou se tornam caixas de pandora quando as tentamos reduzir ao silêncio eterno. Um dia elas se abrem e os monstros, como os demoninhos da lenda, vem nos puxar as pernas em nossas camas. Salve-se quem puder.
A idéia de instituir uma lei de “silêncio eterno” para certos documentos oficiais foi lançada sem muito sucesso: houve a natural grita de quase todos os setores intelectuais e é bem possível que tudo não passe de uma iniciativa abortada, antes sequer de tomar forma. Há uma incompatibilidade entre o mistério e a democracia. Não deve ser por outra razão que a Igreja Católica cultiva o autoritarismo: nada mais insondável do que a vida dos religiosos fora do confessionário. Para a literatura, no entanto, o mistério é mais que um gênero literário. É a própria razão de um livro. H. Bustos Domecq, pseudônimo do autor policial, criado por Jorge Luis Borges e Bioy Casares, parece ser uma espécie de exacerbação do que, por si, é literatura. Sabemos que no último momento Isidro Parodi – o detetive que desvenda os crimes de dentro da prisão – declinará o nome do assassino. Desfeito o silêncio.
Na paródia dos dois escritores argentinos, os próprios personagens periféricos, são nomes conhecidos da novelística universal de mistério, como o padre Brown, clássico do escritor inglês J.K. Chesterton. A questão do mistério, porém, ou do seu sucedâneo, o silêncio, parece ser que ele acaba, quase sempre, no que se convencionou chamar de segredo de Polichinelo. Numa certa medida o mistério parece, inclusive, ter prazo de validade. A história não tem como prêmio esconder fatos, sejam quais forem.
Em certas celebrações do Vaticano, século atrás, executava-se um “Miserere” (uma espécie de pedido de perdão a Deus) do compositor renascentista Gregorio Allegri (1582-1652) que, a parte ser muito belo , “um\ coro de anjos,” dizia-se com certa razão – era uma espécie de monopólio da Igreja. Ninguém, por proibição expressa das autoridades religiosas, podia divulgar a partitura. Era escutá-la e só. Isso até o dia em que um menino de doze anos, no século XVIII, ao assistir o ofício religioso por apenas duas vezes, na Catedral de São Pedro, resolveu escrever, nota por nota, o contraponto intrincado da obra – tarefa de um gênio, mas que se explicava pela identidade do garoto. Tratava-se do Wolfgang Amadeus Mozart. Dali em diante estava quebrado o mistério da grande música da Igreja, o milagre do “canto dos anjos”: a partitura, no tempo de divulgação possível para a época, seria, então, acessada pelo resto da Europa e, mais tarde, pelo mundo.
Para Mozart, música alguma constituía mistério. Era ouvi-la, e escrevê-la em seguida. No entanto, ele mesmo, ou melhor, sua biografia, seria assombrada, no futuro, por boatos que supõem mistérios e que acrescentam perguntas, aparentemente irrespondidas para a posteridade. Sua morte prematura prestou-se a muitas conjeturas que quase sempre avançaram para o fantástico. Seu passamento teria sido precedida por uma encomenda secreta de seu famoso réquiem. Durante anos propalou-se que o anúncio de sua própria morte, apareceu-lhe sob a forma de um espectro: ele lhe teria encomendado o réquiem (que Mozart, contudo, não concluiu), mas que deveria ser executado por ocasião da sua própria morte É uma bela página fantástica para as histórias detetivescas, mas se sabe hoje que quem a encomendou foi um nobre, que queria permanecer no anonimato, daí a sua aproximação velada do compositor E que no filme ¨Amadeus¨ aparece, claramente, como um fantasma. Uma inverdade “bene trovata”, apenas isso.
Apesar de tudo, porém, persistiu o instigante da morte prematura do compositor. Como “não poderia ter morrido tão moço “, com apenas 35 anos, foi acrescentada uma outra história, ainda mais rocambolesca (palavra, aliás, que vem de Rocambole, um personagem de mistério de uma série saída em folhetim no século XIX, de autoria de Ponson du Terrail). Por ela, Mozart teria sido envenenado, e por ninguém menos que a Maçonaria. A organização secreta a que, de fato, Mozart pertenceu (escreveu várias obras para exaltá-la), teria se sentido devassada pelo compositor. Ao escrever a sua ópera “Flauta Mágica”, Mozart teria revelado vários segredos do grupo esotérico. Sabe-se que isso, comprovadamente, não aconteceu, mas desde que se mantivesse silêncio a respeito, ficaria a dúvida.
Na verdade, nada desses acontecimentos tem a ver com qualquer coisa parecida com o “silêncio eterno” reivindicado por alguns políticos da base do governo. Essa é uma suposição que fica da Igreja, ou melhor, de todas as igrejas. E, mais que tudo, de todas as organizações, inclusive as empresariais. Quando não, por grupos clandestinos, que vão do IRA irlandês, a Al Qaeda islâmica. Mas disso se sabe tanto, que é até ocioso fazer qualquer menção.
Chesterton, inspirador de Borges e de Bioy Casares em muitos bons momentos de seus escritos, não apenas aos que pertencem ao gênero explicitamente ¨de mistério¨, aponta, não raras vezes, para o fantástico. Num de seus romances, em que a palavra “delicioso” talvez não seja um juízo exagerado, há que se aduzir o fantástico. Chama-se “O Homem que foi Quinta-Feira”. Como o intrigante do título sugere, é um livro detetivesco , mas com um tom farsesco que se aproxima do incrível. De repente, lá pelo fim do livro, o grande vilão não é quem pensamos, se é que existe um vilão. E, nas últimas páginas, o que resta é o poético.
Talvez seja essa a questão do silêncio: ele valerá para o mistério na dimensão em que não se diz. Um dos maiores filmes de terror de todos os tempos traduzido como “Os Inocentes”, do inglês Jack Klayton, assusta por nunca mostrar explicitamente as fantasmagorias. É como se os personagens fôssemos nós mesmos. A todo o momento ficamos na dúvida se estamos vendo o que parece nos observar do meio do lago. Os monstros não são explícitos e , no final, a questão persiste em aberto. Pois as dúvidas – os silêncios – são os que mais nos incomodam. E assustam.
Talvez fosse isso que o senador autor da proposta sobre a tal lei do silêncio eterno, na verdade, quisesse: que os brasileiros ficássemos na expectativa de que tenhamos medo da nossa história. Para exemplificar, o senador citou o Barão do Rio Branco. Como criador da Chancelaria, antes e depois da República, o Barão teria segredos a manter sobre o Brasil. Claramente, o tal senador, não se referiu à ditadura militar recente que a rigor, não tem como se manter silenciosa, já que os gritos dos torturados ainda ressoam entre nós, pois muitos estão vivos ainda. Mas ao se referir ao criador do Itamarati, ele talvez se referisse, entre outros, ao que quase todos sabemos; que a tomada do Acre pelos brasileiros, talvez não seja de molde mesmo a aquietar nossa consciência, já que o gaúcho Plácido de Castro, que chefiou os seringueiros contra o exército boliviano, era claramente um agente provocador a serviço do Brasil. E talvez tenha sido assassinado justamente como “Queima de Arquivo”, uma história que, afinal, talvez a Globo nunca estivesse disposta a contar.
A questão, porém, continua: onde o segredo ou o silêncio, por mais “obsequioso” que seja?
No fundo, de novo, quem sabe, naquilo que a Igreja chama justamente de “Silêncio Obsequioso” que seria um calar boca que o candidato ao mutismo aceitaria de bom grado, como uma espécie de aceitação de sua confissão, de que errou em alguns pontos doutrinários. Mesmo isso, porém, sem qualquer intromissão via internet , tal qual o wikleaks , mostra-se, no mínimo, fragilíssimo. Acaba de sair nos Estados Unidos o livro de um jornalista norte-americano, “católico praticante” como ele se define, em que são reveladas com nomes e endereços, os casos de homossexualismo e de práticas heterossexuais de membros teoricamente celibatários, da Igreja. Em que até mesmo a prática do aborto – justamente para evitar escândalos, como sempre -seria explicitamente recomendado por bispos e outros membros da hierarquia da Igreja. Não se trata evidentemente de um assunto para ser discutido em colunas sociais. Ou em páginas em que se fale da arte e da cultura. Mas são casos claros em que o que sobra, afinal, é o sempiterno segredo de Polichinelo. Todo o mundo sabe,
Paganini gostava de fazer segredo quanto a sua técnica prodigiosa ao violino. Muitos juravam que ele tinha feito pacto com o demônio. Era uma história que o violinista sempre fez questão de não desmentir. O silêncio sobre sua técnica, porém, nunca foi além do que ele escrevia. E na medida em que outros instrumentistas se jogavam no violino, estudando-o e praticando-o, mais e mais foi se impondo a crença, não de que Paganini tivesse feito qualquer acerto com satanás, mas de que tudo estava nos dedos para quem quer que tivesse talento e vontade para chegar ao seu virtuosismo. Hoje sabemos que um músico extraordinário pode se alçar ao domínio que Paganini tinha de seu instrumento. Nunca houve segredo algum. Seria, aliás, uma bobagem para a sua memória. que somente ele, apenas ele, tocasse as músicas que compôs.
Digamos que seja esse o limite do segredo – que é de não ser senão o começo da verdade. Pois daí, quem sabe, advenha todo o mistério, o mistério de Paganini. Mas também da história. Não será por a termos engavetada em arquivos indevassáveis, que ela deixará de bramir. As verdade são, ou se tornam caixas de pandora quando as tentamos reduzir ao silêncio eterno. Um dia elas se abrem e os monstros , como os demoninhos da lenda, vem nos puxar as pernas em nossas camas. Salve-se quem puder.
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
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