Como a arrogância iludiu e derrubou Antonio Palocci
Um relato em primeira pessoa, que ajuda a compreender a natureza da crise política, o isolamento do ministro-chefe da Casa Civil e seu desfecho inevitável: a queda
Não se recomenda a jornalistas que escrevam em primeira pessoal. Afinal, devem ser narradores, portanto coadjuvantes, e não protagonistas da história. Mas decidi quebrar o protocolo em relação ao ministro Antonio Palocci por uma razão simples. O que vi e observei nos últimos anos – muitas vezes de perto – ajuda a compreender a natureza da crise, o isolamento do ministro da Casa Civil e a prever o desfecho inevitável, que será a sua queda.
Eu o conheci em 1994, quando trabalhava como repórter da revista Exame, à época a principal publicação de economia e negócios do País, e Palocci era prefeito de Ribeirão Preto. Talvez tenha sido um dos primeiros, da chamada “grande imprensa nacional”, a enxergar algo novo naquele promissor quadro do Partido dos Trabalhadores. Palocci era um petista diferente. Havia decidido privatizar a Ceterp, a empresa de telecomunicações de Ribeirão Preto, que era uma das poucas municipalidades a ter sua própria concessão de telefonia. Palocci privatizava, num tempo em que o PT cuspia fogo contra as privatizações de FHC. Matreiro e extremamente cordial, ele enxergou uma oportunidade de ouro: a de construir um discurso customizado para as elites – era o petista civilizado, que não mordia e que, portanto, não deveria assustar o grande capital. Começava a nascer ali o “fiador” de um futuro governo do PT, algo que, mais cedo ou mais tarde, aconteceria no Brasil – e muito provavelmente à revelia das elites, que precisariam de um “homem de confiança” no poder.
Era um discurso apropriado para os empresários, mas que enfrentava sérias resistências dentro do próprio PT. Tanto que, na campanha vitoriosa de 2002, previa-se um papel secundário para o ex-prefeito de Ribeirão Preto. Não fosse o assassinato de Celso Daniel, que seria o coordenador de campanha e, portanto, homem forte do governo Lula, talvez a Projeto nunca tivesse saído do projeto. Mas a história é traiçoeira. O ex-prefeito de Santo André foi morto e Palocci acabou sendo alçado a uma posição que não estava desenhada para si. E ele, mais uma vez, soube agarrar a oportunidade. Quando Lula precisou convencer a sociedade brasileira de que não estava disposto a abandonar conquistas importantes do passado, como o controle inflacionário, Palocci idealizou a “Carta ao Povo Brasileiro”.
Até aí, nada demais. Mas Palocci, matreiro como sempre, enxergou uma nova oportunidade: a de estender o seu pacto com as elites também aos meios de comunicação. E começou logo pelos grandalhões do pedaço. Antes de divulgar a Carta, o então coordenador da campanha de Lula pegou o telefone e discou para João Roberto Marinho, das Organizações Globo, a quem submeteu o texto. Anos depois, quando Palocci já havia sido derrubado pelo escândalo Francenildo, fui um dos poucos jornalistas a quem ele deu o privilégio de ler em primeira mão o livro “Sobre Cigarras e Formigas”, que narra sua passagem pelo primeiro governo Lula. Palocci me pediu uma crítica e eu sugeri que retirasse um único trecho: o que citava esse telefonema a João Roberto Marinho, relacionado à Carta ao Povo Brasileiro. Ele não me ouviu.
Durante muito tempo, fiquei intrigado com aquilo. O que Palocci teria a ganhar, expondo publicamente sua subserviência à Rede Globo? Haveria um pacto maior com João Roberto Marinho? Seria uma forma de construir uma blindagem futura? E eu me lembro de ter argumentado que a própria Globo o havia “abandonado” no caso Francenildo – o jornal da família Marinho e o Estado de S. Paulo foram os que bateram com mais força durante aquela crise. Nesta semana, a reportagem de Época dedicada ao ministro se chama “Um fardo chamado Palocci”. Para mim, estava claro que não existem pactos eternos – na hora H, ninguém, na grande imprensa ou no empresariado, se dispõe a carregar um cadáver.
Mas Palocci pensava diferente. Ele imaginava que, um dia, pertenceria à própria elite. Seria, como nos comerciais da Nextel, alguém do “clube”. E seu relacionamento com a imprensa, nos anos em que foi ministro da Fazenda, começou a mudar. Aconselhado pelo assessor Marcelo Netto, ex-diretor da Rede Globo em Brasília, ele passou a privilegiar a televisão dos Marinho e a se distanciar dos demais. Naquele tempo, eu o acompanhava como editor de economia da revista Istoé Dinheiro, na Editora Três. Cobrimos as adversidades na economia (o espetáculo do crescimento ainda não havia começado) e levantávamos dados sobre a polêmica passagem de Palocci pela prefeitura de Ribeirão Preto, em seus dois mandatos. Leão Leão, Buratti, Poleto & companhia já começavam a surgir.
Quando Palocci caiu, em 2006, enxerguei ali algo maior do que a derrubada de um ministro. Na minha visão, por mais grave que fosse o caso Francenildo, era uma tentativa de abalar as estruturas do governo Lula. Dizia-se, por exemplo, que Palocci era o “pau do circo”. Se ele caísse, desabaria também a lona sobre o picadeiro. O que muitos não enxergavam é que Lula era muito maior do que Palocci – e que a economia, depois da saída do ministro, até melhorou.
Palocci caiu em desgraça, foi abandonado pela grande imprensa, mas eu passei a procurá-lo com insistência. Não havia dia que eu não telefonasse para sua assessora de imprensa, Mariângela Amorim. E foi assim que conseguiu publicar, na Istoé Dinheiro, sua primeira entrevista após a queda. A chamada de capa: “Tenho humildade para recomeçar”. E passei a acreditar, realmente, que Palocci havia mudado. Que havia aprendido com os erros.
Foi naquele período, entre a demissão, no governo Lula, e a campanha para deputado federal, que Palocci decidiu se estabelecer como consultor, seguindo os passos de José Dirceu. A diferença é que Zé estava banido da política, cassado por conta do Mensalão, enquanto Palocci pretendia acumular a atividade de consultor com a de parlamentar – o que já seria amplamente questionável. Zé Dirceu atuava prioritariamente fora do País, pela influência que tinha em governos de esquerda; Palocci agia aqui dentro.
Tempos depois, veio o julgamento do caso Francenildo no Supremo Tribunal Federal. Naquele momento, não havia provas, de fato, de que Palocci tivesse ordenado a quebra do sigilo do caseiro. Tudo poderia ter começado, sim, na Caixa Econômica Federal e ter sido vazado por amigos do ministro, dispostos a preservá-lo. Diante disso, e também graças ao competentíssimo trabalho do advogado José Roberto Batochio, Palocci foi absolvido por cinco votos a quatro. A elite estava em festa. Empresários soltavam rojões. Palocci, quiçá, poderia até ser uma alternativa à sucessão de Lula, num momento em que Dilma Rousseff inspirava mais medo do que confiança entre as elites.
Essa possibilidade logo foi enxergada pela ala da imprensa mais alinhada com José Serra – que não é preciso nomear. E a decisão do STF passou a ser intensamente bombardeada pelos porta-vozes do serrismo. Naquele momento, publiquei uma coluna na Istoé chamada “Inocente por inteiro”. Simplesmente porque, num processo judicial, o placar é irrelevante. E num foro como o STF, uma vez tomada a decisão, ela passa a ser de todos os ministros, não importa se por 11 a zero ou por cinco a quatro, como ocorreu.
Na Istoé Dinheiro, ouvi muitos empresários que sonhavam com a candidatura de Antonio Palocci à presidência da República. Era Deus no céu, Palocci na Terra. E o PT, pragmático que é, enxergou o mesmo fenômeno. Se o ex-prefeito de Ribeirão Preto era tão querido pelos empresários, por que não colocá-lo na chefia da campanha de Dilma e no comando da arrecadação de recursos? E foi assim que choveu dinheiro para os cofres do partido.
Talvez aí Palocci tenha errado pela segunda vez, quando percebeu que, novamente, poderia ser o “fiador”, o “homem de confiança” das elites. Na campanha, o próprio presidente Lula brincou dizendo que “se um Lulinha assusta muita gente, uma Dilminha assusta muito mais”. Mas para que ter medo do lobo mau – ou da loba má – se havia um Palocci morando na floresta?
Em 1º de janeiro de 2011, fui a Brasília assistir às posses da presidente Dilma e de alguns ministros. Fui à de Palocci, na Casa Civil, e fiquei surpreso ao ver que o PIB brasileiro transbordava daquela sala do Palácio do Planalto – a posse palocciana contou com mais empresários do que a de Dilma. E ele fez um discurso extremamente cauteloso, colocando-se sempre como “subordinado” à chefe Dilma. Jamais como primeiro-ministro, eminência parda ou coisa que o valha. Naquela multidão, fui cumprimentá-lo e fiquei surpreso, mais uma vez, quando ele me disse: “Obrigado pelo que você fez por mim”.
Confesso que não esperava nenhum tipo de agradecimento. Nas minhas conversas com fontes e amigos petistas, sempre ouvia a mesma reclamação relacionada ao ministro. “Palocci não tem reciprocidade”, diziam-me. “Pensa nele, não no partido”. Hoje, diante da revelação de que “faturou” R$ 10 milhões entre a vitória no segundo turno e a posse de Dilma, essas mesmas fontes dizem que foi, sim, apropriação indébita de recursos de campanha – e o detalhe é que o PT está oficialmente endividado. Por isso mesmo, dizem que Palocci está mais para Silvinho “Land Rover” Pereira, banido para sempre, do que para Delúbio Soares, recentemente reabilitado.
Palocci hoje está só. Ele serviu às elites imaginando que se tornaria sócio do clube. Mas os meios de comunicação, pragmáticos, já lavaram as mãos e o abandonaram. Os empresários, idem (e é muito pouco provável que a Projeto tenha clientes depois desta crise). Por fim, o PT o vê majoritariamente como um traidor. Sobraria Ribeirão Preto. Mas Ribeirão está para Palocci assim como o Maranhão está para José Sarney. Lá, ele não se elege.
Restaram-lhe apenas os seus milhões.
Que serão seus até o dia em que um procurador de coragem resolver investigar a fundo a sua evolução patrimonial.
Leonardo Attuch
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