“Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes. Assim, vemos melhor e mais longe do que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mas porque eles nos elevam até o nível de toda a sua gigantesca altura...”
Bernardo de Chartres
O conceito de Idade Média como “Idade das Trevas”, em oposição ao Renascimento e à Antigüidade, foi forjado sobretudo no século XIX pelos historiadores liberais, segundo o qual a Idade Média teria interrompido o progresso do conhecimento e da cultura do homem, que seriam retomados mais tarde no século XVI.[1] Felizmente, este conceito vem sendo desmistificado por diversos estudiosos. Seguindo a teoria de Toynbee[2], os movimentos culturais podem estar ligados por uma relação de gerações, de tal modo que uma cultura seja filha da outra. Esta é relação existente entre a Antigüidade, a Idade Média e a Cultura Ocidental Moderna. A idéia de Idade Média como uma época que esqueceu os antigos não se fundamenta e, na verdade, temos a Idade Média como filha da Antigüidade e berço do Renascimento e, enfim, do nosso mundo ocidental.
Portanto não é possível estudar a Idade Média se nos limitarmos a (pre)conceitos criados a posteriori, pois nela encontramos elementos cuja história e significado só se encontram em períodos mais antigos.[3]
O medievo bebe na fonte dos antigos mas, não se contentando com o paladar, altera-lhe o sabor a seu gosto. Estamos falando de uma nova utilização dos antigos (entendidos como toda a cultura antiga, não somente a clássica), que alguns chamariam supostamente de imitação servil, mas que, aos olhos do homem da época é algo completamente novo, moderno. A partir do legado da tardia Antigüidade latina, a Idade Média adotou e transformou seus elementos, construindo uma imagem própria dos antigos: “a Antigüidade está presente na Idade Média como recepção e transmutação”.[4]
Os medievos procuraram traduzir, estudar e entender os antigos, pois, para refutar suas doutrinas foi preciso conhecê-las. Eles acreditavam que a filosofia antiga (sobretudo Aristóteles e Platão) tinha de ser reutilizada, à luz de uma nova interpretação cristã, como nos diz neste trecho o inglês Daniel de Morley, reportando-se ao bispo de Norwich:
“Que ninguém se aflija se, tratando da criação do mundo eu invocar o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, pois, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas de suas palavras, a partir do momento que estejam cheias de fé, devem ser incorporadas ao nosso ensino.” [5]
Vejamos a reinterpretação que Santo Agostinho, um dos expoentes da Idade Média, faz de Platão e Aristóteles, ilustrando com o capítulo 8 do livro VI das Confissões[6]. Nele, Alípio – ex-aluno e futuro amigo de Agostinho – recusa-se a assistir às lutas de gladiadores, mas acaba sendo levado “amigavelmente” à força pelos amigos. Para se proteger contra a massificação e a catarse daquele espetáculo sangrento e cruel, o jovem Alípio conta com seu esclarecimento sobre o que é o bem e o mal, pois o homem instruído e consciente seria capaz de se proteger contra tais males: “Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos”[7]. Ledo engano: o homem esclarecido, consciente de si mesmo se entrega tanto mais facilmente e com tanto mais ardor àquela massificação. Vamos nos apoiar na brilhante análise que Erich Auerbach[8] faz desse texto para mostrar como a Antigüidade é reutilizada pelo pensador cristão. A autoconsciência individualista e orgulhosa é derrubada: “não se trata de um Alípio qualquer, mas de toda a cultura racional e individualista da Antigüidade clássica: Platão e Aristóteles, os estóicos e os epicuristas”[9]. A derrocada é tanto maior quanto maior a suposta consciência: o homem consciente se converte em massa e vai além, conduz a massa. Essa mudança radical, como aponta também Auerbach, é cristã, sendo a derrota a primeira etapa da redenção em Deus: “O Cristianismo dispõe, na sua luta contra a embriaguez mágica, de outras armas que não as da elevada cultura racional e individualista da Antigüidade”[10]. Se por um lado, Agostinho reutiliza os antigos, seu estilo de texto é “totalmente anticlássico”, tanto no tom humanamente dramático como na forma, que lembra passagens bíblicas; Agostinho se utiliza dos clássicos, mas não se deixa dominar por ele, como aponta Auerbach.
Dante é outro “produto” da Antigüidade, e bebe dessa fonte para construir o maior painel da época medieval, sua Divina Comédia. Na viagem de Dante ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso – conduzido pelo altíssimo poeta Virgílio, a mentalidade, a cultura, a sociedade, o amor são questionados em conversas travadas com inúmeros personagens. A Divina Comédia também é uma censura à época, escrita, segundo o poeta, em “linguagem vulgar que as mulheres utilizavam em suas conversações diárias”[11]. No canto IV do Inferno, Dante e Virgílio se encontram com os antigos: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e depois Estácio. Esse encontro representa a aceitação de Dante no círculo dos poetas antigos (a bella scuola) e a sanção de sua missão poética.[12] Assim, só podemos compreender Dante, se estudarmos Virgílio e, antes deste, Homero:
“O encontro de Dante com a bella scuola autoriza a incorporação da épica latina na poesia universal cristã. Compreende um lugar ideal, onde ficou reservado um nicho para Homero, e onde se acham reunidas todas as grandes figuras do Ocidente (...) Nele deita raízes a Divina Comédia. É a velha estrada da Antigüidade que conduz ao Mundo Moderno.”[13]
Ecoam também em Giovani Bocaccio, autor do Decameron, os reflexos dos antigos. Na medida em que ambos rompem com uma estrutura rígida coercitiva, Eurípides e Bocaccio são precursores da nossa modernidade. Aquele desmistificando o esquema coercitivo-aristocrático das tragédias, colocando o povo como personagem principal e celebrando o indivíduo. Bocaccio, grande admirador e seguidor de Dante, popularizando a literatura e escandalizando com suas novelas, escritas em língua vulgar, em que jovens fogem da peste e se refugiam nos montes, visualizando novos horizontes (fuga do passado, rumo a uma nova era); temos, então, uma transfiguração do espírito revolucionário de Eurípides. Além disso, ambos são precursores do romance burguês moderno.
Podemos citar inúmeros outros exemplos, mas limitemo-nos a expor mais dois: o primeiro intelectual, tal como concebemos, nasceu na Idade Média: Abelardo, cristão nutrido na filosofia antiga que reclama a aliança entre a razão e a fé, o primeiro professor, para usar as expressões de Le Goff[14]; e as Universidades, centro da nossa intelligentsia e instituição de pesquisa por excelência, foram criadas nessa época.
Há que se negar as oposições Medievalidade-Antigüidade e Medievalidade-Modernidade pois não se pode ser moderno se não se estuda os antigos. Isso vale tanto para a Idade Média em relação à Antigüidade como para o nosso mundo com relação à Idade Média. É a partir do legado da Idade Média que os clássicos chegam aos renascentistas e, depois, até nós. Dizemos que nosso mundo atual é fruto do pensamento clássico greco-romano. Na verdade, não nos damos conta que somos filhos do pensamento medieval, no qual os conceitos clássicos passaram pelo filtro da doutrina cristã:
“falamos idiomas surgidos naquela época, temos ou pretendemos ter governos representativos, consideramos indispensáveis instituições como julgamento por júri e habeas corpus, alcançamos maior eficiência com o sistema bancário, a contabilidade e o relógio mecânico, cuidamos do corpo com hospitais e óculos, alimentamos melhor o espírito graças à notação musical, à imprensa e às universidades, embelezamos a vida com a música polifônica e os romances”.[15]
Temos de tentar compreender a Idade Média, então, a partir dos olhos de uma pessoa daquela época, isto é, sem preconceitos, reconhecendo sua modernidade e seu rico legado cultural. Conhecer a Idade Média, matriz da civilização ocidental cristã, enfim, é compreender melhor o nosso século.
AUERBACH, Erich. Mimesis – A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998.
CURTIUS, Ernst R. Literatura Europea y Edad Media Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.
FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1996.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LE GOFF, JACQUES. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995.
LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999, Coleção Os Pensadores.
[1] Cf. OLIVEIRA, Franklin. “Breve Panorama Medieval” in LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. V.
[2] Cf. CURTIUS, Ernst R. Literatura Europea y Edad Media Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 21
[3] Ibidem, p. 30.
[4] Ibidem, p. 39.
[5] Apud LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 29.
[6] Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
[7] Ibidem, p.157.
[8] AUERBACH, Erich. Mimesis – A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 56-61.
[9] Ibidem, p. 59.
[10] Ibidem, Loc. cit.
[11] Apud FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 140.
[12] Cf. CURTIUS, Ernst R. Op. cit. p. 37.
[13] Ibidem, p. 38.
[14] LE GOFF, Jacques. Op. cit. pp. 39 ss.
[15] FRANCO Jr., Hilário. Op. cit. p. 179.
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