domingo, 24 de julho de 2011

Mario Lago: ator, compositor, escritor. “Fiz tudo o que foi possível”


Felipe Prestes

“Fiz tudo o que foi possível”, resumiu uma vez Mario Lago, diante da entrevistadora Leda Nagle, em programa na extinta TV Manchete. O ano era 1991. Lago chegava aos 80 anos e não mentira. É difícil encontrar alguma figura com mais facetas do que ele: foi compositor, ator, dramaturgo, escritor, radialista, poeta, militante comunista. Tivesse concluído sua autobiografia poderia intitular como fez Neruda: “Confesso que vivi”.

No mesmo programa na Manchete, Lago garantiu ter um acordo com o tempo: “Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia a gente se encontra”. E recitou um soneto de sua autoria em que admite a própria morte e resume sua biografia, marcada por ter feito tudo o que queria fazer, pela alma boêmia e pela longevidade:
Somei noite mais noite olhando a lua
Decorei cada estrela que brilhava

Morri mais de uma vez em cada rua

E sempre a cada vez, ressuscitava
Fui Deus e rei, artista e vagabundo
Vivi mais de mil vidas por segundo

Ultrapassando sempre o mais em frente
Hoje deixo que o tempo me ultrapasse
Morri de vez, mas, se ressuscitasse
Faria tudo como antigamente
Ele partiria, de fato, apenas dez anos depois, com 90 anos, em maio de 2002. Nascido no dia 26 de novembro de 1911, Mario Lago completaria um século de vida neste ano. Arte e militância política vinham de berço. O pai era o maestro Antonio Lago. O avô materno, um anarquista.e flautista italiano chamado Giuseppe Croccia.

Ainda assim, a mãe de Mario, Francisca, insistiu para que o filho estudasse Direito, sonhava até com que o rebento fosse embaixador, porque era magrinho e ficaria bem de casaca. “Ilusão de mãe”, definiria ele, apesar de ter cumprido com o pedido materno e se formado em Direito. “Joguei o diploma no armário, que depois foi comido pela chuva, nunca liguei para aquilo”.

Aos 18 anos, Mario Lago já escrevia textos para o teatro de revista, mas não assinava, vendia para outros autores. O primeiro poema publicado, na revista Fon Fon, foi quando tinha apenas 15 anos. Com 21 anos, em 1933, ano em que se formou, já tinha duas peças de sua autoria. A primeira, “Flores à Cunha”, satirizava o general gaúcho José Antônio Flores da Cunha.

Em 1935, teve sua primeira composição gravada, a marcha “Menina eu sei de uma coisa”, parceria com Custódio Mesquita, que falava de uma socialite que estaria atuando como garota de programa. A carreira de ator começou um pouco mais tarde, em 1942. Lago costumava assistir os ensaios das peças de Joracy Camargo, um dos mais prestigiados dramaturgos brasileiros da primeira metade do século XX. Um dia, descontente com o ator que encenaria o galã na peça “O Sábio” Joracy convidou Mario, que estava por ali de bobeira. Deu muito certo.

“O movimento feminista não me perdoa”

Mario Lago compôs mais de uma centena de canções, mas ficará marcado para sempre por uma delas. “Ai, que saudades de Amélia” consagrou o termo “amélia”, que ganhou até os dicionários como sinônimo de mulher submissa às vontades do marido. Lago, que a vida inteira lutou por ideais como a igualdade, ficou eternizado por algo que não escreveu. Quase 70 anos depois da música ser lançada, em 1942, os brasileiros ainda costumam usar amélia para falar de uma mulher que lava, passa e cozinha para o marido, algo que não tem relação com a letra da música.
Ai, que saudades da Amélia

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: “Meu filho, o que se há de fazer!”
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
“O movimento feminista não me perdoa”, lamentou. Mario Lago sempre discutia com as mulheres que o acusavam de machista por causa de sua composição mais famosa. Para ele, Amélia era uma mulher que diante de uma situação difícil ficava ao lado do marido. Quanto à frase mais polêmica da música – “achava bonito não ter o que comer” – dizia que não passava de licença poética para se referir a alguém que não ficava reclamando da vida. Lago definia a personagem Amélia como uma mulher solidária.

Ele também afirmava que a verdadeira mulher submissa era a outra que aparece na música, que só queria saber de luxo e riqueza. Uma mulher que achava que deveria receber tudo do marido. “Nunca suportei dondoca”, declarou à revista Comunicação e Educação, da USP, meses antes de morrer.

O grande Ataulfo Alves foi um dos principais parceiros de composição de Mario Lago. Juntos compuseram, além de “Ai, que saudades de Amélia”, outros sucessos como “Atire a primeira pedra” e “Covardia”. Lago teve muitos outros parceiros e não compôs apenas sambas. Foram também várias marchinhas carnavalescas, a mais conhecida delas “Aurora”, com Roberto Roberti. “Se você fosse sincera, ôôôôôô… Aurora”. Na entrevista à publicação da USP, Lago explicou que sempre procurava compositores de renome para musicar suas letras, como o próprio Ataulfo e Benedito Lacerda. “Preparei meu terreno, não foi por acaso”.

Lago nunca lamentou ser menos reconhecido pelas canções do que seus parceiros. Entendia que, por não ser cantor, era natural que gente como Ataulfo, que compunha e interpretava, ficasse com maior parcela de reconhecimento. Entretanto, ao ver Mario Lago interpretando “Nada Além”, que foi seu primeiro sucesso, percebe-se que poderia ter sido também ótimo intérprete.

Sete vezes na cadeia


Na década de 20, o avô anarquista vibrava com cada passo da Coluna Prestes e guardava recortes de jornais – gostava de qualquer revolução, segundo o neto. Mario se tornou marxista na faculdade de Direito onde, inclusive, compôs uma chapa de esquerda no centro acadêmico. A primeira leitura sobre o tema foi “Os diálogos da Revolução”, de Lênin.

Em 1932, foi para a cadeia pela primeira vez. Fazia parte da Juventude Comunista e estava participando de um comício na porta da fábrica de tecidos Maxwell. Seriam, ao todo, sete prisões políticas: em 1932, 1941, 1946, 1949, 1952, 1964 e 1969. Na última, pouco depois do AI-5, teve regalias porque estava preso junto com Carlos Lacerda.

Como Niemeyer, Mario Lago jamais deixou de se considerar marxista. Na militância política conheceu Zeli Cordeiro, que seria sua companheira por mais de 50 anos. Ela era filha do dirigente comunista Henrique Cordeiro. Com Zeli, teve cinco filhos, entre eles Luís Carlos, em homenagem ao Cavaleiro da Esperança. Segundo o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin, Mario contribuiu com dinheiro para a subsistência de Prestes até a morte dele.

Em 64, Mario não tinha mais "coronária" para aguentar a censura (Foto: Divulgação)

O artista sofreu com as censuras desde a década de 1930. Exerceu fortemente a crítica política e de costumes escrevendo para o teatro de revista. E para ele foi o Estado Novo que matou com o teatro de revista. Marcadamente satírico, o estilo não resistiu à censura. Em 1949, foi demitido da Rádio Nacional por inserir uma fala antiimperialista a um personagem de uma rádionovela. Voltaria a trabalhar na rádio anos depois, para ser novamente demitido, sumariamente, em 1964.

Segundo o grupo Tortura Nunca Mais, Mário participou de muitas campanhas como a do Petróleo é Nosso e Contra as Armas Nucleares. Durante a Segunda Guerra, integrou a Campanha da Paz. Participou das campanhas Contra a Censura, Diretas Já, Apoio ao MST e pela condenação dos assassinos de Chico Mendes. Entre seus 11 livros publicados estão “O povo escreve a história nas paredes”, com poemas de cunho político, e “1º de Abril”, que faz uma provocação aos militares no título e relata suas experiências na prisão.

Após o golpe militar, Mario Lago passou a se dedicar mais fortemente à televisão, apenas como ator. Compunha menos canções, já não escrevia para teatro ou rádio. Com mais de 50 anos, dizia que não tinha mais “coronária” para aguentar a figura do censor. Na televisão participaria de obras importantes como “Grande Sertão: Veredas”, “O Tempo e o Vento”, “Agosto”, “Engraçadinha” e “Hilda Furacão”. Dizia não gostar de atuar em cinema, mas, ainda assim, participou de vários filmes, entre eles “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e “São Bernardo”, de Leon Hirszman.

Apesar do engajamento, poderíamos qualificar tranquilamente Mario Lago como um integrante da esquerda festiva, num bom sentido. Lago nunca tentou cair na chatice de uma arte puramente engajada seja na música, no teatro, na televisão ou na literatura. Uma passagem ilustrativa sobre isto se encontra na biografia, “Mario Lago: Boemia e Política”, escrita por Monica Veloso.

Em 1957, Lago foi até a União Soviética para um intercâmbio. Iria mostrar como funcionavam as rádios brasileiras e conhecer a experiência soviética. Ouviu dos comunistas de lá que o que ele mostrava era pura manifestação “burguesa”. Mas não se acanhou de dizer que o que faziam os soviéticos no rádio era uma chatice e que torcia para que o mesmo não ocorresse no Brasil caso houvesse uma revolução.

Centenário terá até lançamento de canções inéditas

O jornalista Mario Lago Filho prepara uma série de atividades para o centenário de seu pai. Um site oficial (www.mariolago.com.br) será lançado no dia 1º de agosto. Entre as atividades previstas está o lançamento de um disco de marchinhas pelo grupo Cordão do Boitatá que contará com duas composições inéditas de Lago. Uma delas é uma parceria com Braguinha e se chama “Meu Rio, Meu Vício”.

Um outro disco será lançado com canções inéditas e poemas de Mario Lago musicados. Os poemas serão musicados por diversos compositores como Jards Macalé, Lenine, Arnaldo Antunes e Martnália. Também será encenada no final do ano uma peça inédita de Lago sobre a Revolução dos Alfaiates, que fora censurada duas vezes durante a ditadura militar.

Haverá ainda uma exposição no Arquivo Nacional. Os Correios lançarão um selo e um carimbo em homenagem a Lago, e a Casa da Moeda lançará uma medalha. Mario Lago deixou escritas muitas páginas de memórias, que serão lançadas em três volumes pela Editora José Olympio. Dez anos depois de morrer, Mario Lago ainda nos lega teatro, música e literatura inéditos. Uma síntese do que foi em vida. Como ele mesmo comparava, foi um camaleão capaz de adaptar-se a quaisquer lugares onde se respirasse cultura, boemia e política.

Fonte: Sul21

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