quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego


Por Mair Pena Neto

No início da semana, um cidadão tomou o ônibus errado em Niterói, e ao perceber o equívoco, já em plena ponte para o Rio, saltou no ponto da ilha de Mocanguê, o único nos 13 km da via expressa, para tentar voltar. Ao buscar recuperar o tempo perdido, tentou atravessar a pista de altíssima velocidade, foi atropelado e morto. Os jornais do dia seguinte destacaram os 30 km e quase sete horas de engarrafamentos provocados pelo acidente. Sobre o homem morto, não identificado, nenhuma linha.

O nó que o acidente causou no trânsito era, sem dúvida, fato jornalístico, e dá para imaginar quantos motoristas praguejaram contra as autoridades pelas horas perdidas no trânsito paralisado. Muitos, possivelmente, condenaram a vítima pela irresponsabilidade de atravessar as pistas da ponte, o que é proibido. Mas ninguém procurou saber da vida daquele homem. Como vivia, se tinha mulher e filhos, se estava desempregado, infeliz. Uma vida humana representa muito pouco na pressa e ansiedade das grandes metrópoles urbanas. Se fosse alguém famoso, ainda vá lá. Mas um zé ninguém, nem estatística é.

Corte para as ruas de Londres na semana passada. Lojas são saqueadas em bairros pobres da cidade e um jovem estudante malaio ferido é roubado por outros dois homens que simulam ajudá-lo. É o horror, a pura delinquência, disparam os comentaristas mais apressados, olhando a situação apenas em sua superfície, sem refletir sobre as causas profundas. Dois acontecimentos diferentes e distantes fisicamente têm uma coisa em comum: uma desintegração social e moral, que nos transforma em animais irracionais, predadores de nossa própria espécie.

Nas grandes cidades, não temos tempo a perder. Todos se apressam para seus trabalhos, numa corrida desenfreada, que atropela valores. O outro se torna um obstáculo. Seja no ambiente profissional ou na figura de um corpo estendido no chão atrapalhando o tráfego. A busca do "progresso" movido a consumo nos desumaniza. E isso se reflete na falta de solidariedade, no pouco tempo para causas comuns e no egoísmo crescente.

A publicidade seduz, especialmente as crianças e os jovens, e a sociedade se divide entre os que têm e os que não têm as marcas da moda. Sem elas, você não pertence aos grupos e torna-se um pária. Tênis, agasalhos e eletrônicos foram os produtos mais visados nos saques de Londres. Assim como um jovem foi morto não faz muito tempo no Rio apenas para que lhe fossem roubados os tênis e a mochila.

A crise social está presente em todo o mundo. Se nos países mais pobres e em desenvolvimento ela pode explodir em protestos mais consequentes por educação e emprego, no mundo rico ela gera revoltas e destruição, como em Los Angeles, em 1992; Paris, 2005, e Londres, agora. Basta um estopim que a pólvora está pronta a explodir. Principalmente quando envolve os responsáveis pela defesa do sistema injusto e excludente e populações marginalizadas. O julgamento dos policiais que espancaram Rodney King em Los Angeles, os dois adolescentes de origem africana mortos quando fugiam da polícia em um subúrbio da capital francesa e o assassinato pela polícia inglesa de Mark Duggan, em Tottenham, bairro pobre de Londres, no início do mês.

O sociólogo polonês Zygmun Bauman descreveu o que aconteceu em Londres como um motim de consumidores excluídos e frustrados, que não tentavam alterar seu modo de vida, e, sim, reproduzir a elite. E advertiu que enquanto não repensarmos a maneira como medimos o bem-estar, balizado por riqueza material, os conflitos continuarão a ocorrer.

A democracia burguesa liberal e neoliberal não coroou o fim da história como defenderam certos historiadores. Ela está soçobrando em crises de diferentes matizes pelo mundo, que precisam ser entendidas como um só fenômeno, com suas particularidades. Resta a esperança que isso se torne a oportunidade de uma transformação para uma sociedade mais justa e solidária, fundada em novos valores, que priorizem o ser humano acima dos valores materiais.

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