sábado, 20 de agosto de 2011

Nei Lisboa: “A democracia patina sem dar mostras de que evolui”

O Sul21 convidou o cantor e compositor Nei Lisboa para um papo em que se falasse sobre democracia, revoltas sociais, ditadura, gauchismo e – por que não? – música. Nei soltou o verbo sobre todos estes temas, mesmo com o jeitão tímido, o falar baixo, às vezes quase sussurado. No papo de quase uma hora, em uma lancheria tradicional do bairro Bom Fim em Porto Alegre, o compositor repleto de conteúdo crítico em sua obra musical explicou por que política e música têm se afastado cada vez mais. “Acho que é um sentimento genérico muito forte, não é só da música, mas de muitas áreas, de descrença naquilo que a imensa maioria diz que é uma democracia consolidada. Acho que a democracia, ao contrário, patina sem dar mostras de que evolui para uma democracia plena”, disse.

Nei se mostrou descrente, inclusive, com o contexto atual de revoltas nos países árabes e na Europa e o comparou com o início do século XXI, com os protestos contra a globalização e o surgimento do Fórum Social Mundial – momento motivou Cena Beatnik, disco de 2001. “Aqueles protestos de Seattle (durante um encontro da OMC, em 1999) tinham um caráter bem mais ordenado, em termos de um objetivo, um ideal”.

O compositor, que teve o irmão mais velho Luiz Eurico Tejera Lisboa, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), desaparecido em 1972, também falou sobre a iminência da criação da Comissão da Verdade. Sobrou tempo, é claro, para falar de música. Nei está compondo e um novo disco deve sair no ano que vem, sete anos depois do último álbum autoral.

Sul21 – Nos anos 1970, tivemos no Brasil muita música com conteúdo político. Nos anos 1980, também e de uma maneira até mais explícita, durante a abertura política. Tu fizeste muito e também as bandas de rock, como Titãs, Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso. Atualmente, parece que não temos muito isto. Tu também tens esta impressão? Será que a democracia consolidada tirou o tesão de compor sobre política?

Nei Lisboa – Acho que é um sentimento genérico muito forte, não é só da música, mas de muitas áreas, de descrença naquilo que a imensa maioria diz que é uma democracia consolidada. Acho que a democracia, ao contrário, patina sem dar mostras de que evolui para uma democracia plena. Parece demandar mais do que uma reforma, ou um aperfeiçoamento: uma ruptura com alguma coisa. Parece dar mostras de ser uma estrutura política umbilicalmente ligada a uma visão capitalista, neoliberal do mundo. Pelo menos assim ela é usada o tempo todo. A primeira ameaça que surge contra a liberdade absoluta para os movimentos de capital ou para qualquer das estruturas liberais já se chama de uma ameaça à democracia. Isto vai gerando um desconforto genérico nas pessoas. Elas estão vendo que na verdade aquilo que domina o Estado é o poder do capital financeiro.

Sul21 – Isto tudo não seria um prato cheio para representações na música?

Nei Lisboa – Acontece é que na medida em que o tempo vai passando e as pessoas veem que estas estruturas se eternizam. O caso do Congresso brasileiro, por exemplo: todo mundo já cansou, há um desgaste do próprio protesto, tu passas a desacreditar. Hoje, no que tu vês acontecendo nas ruas em Londres, por exemplo, as pessoas chegam se perguntar: “mas por que mesmo?”. Passa a ter um objetivo mais fluido, genérico, porque a dimensão do caminho político e partidário não serve para ninguém. Isto é muito ruim. Acho que é a pseudodemocracia forjando um ambiente de descrédito total à democracia.

Sul21 – Tu disseste em um bate-papo no Núcleo da Canção da Ufrgs, que quando lançaste o Cena Beatnik, em 2001, tu vias o surgimento de uma alternativa ao modelo neoliberal, que tinha tido uma hegemonia bem maior nos anos 1990.


Nei Lisboa – Aquele foi um bom momento, mas muito pontual. Aqueles protestos de Seattle (durante um encontro da OMC, em 1999) tinham um caráter bem mais ordenado, em termos de um objetivo, um ideal. O Fórum Social Mundial foi uma tentativa de dar uma ordenação a este debate, alternativas para esta cilada de estarmos presos a uma democracia. Em cima daquele momento veio a queda das torres e uma reação fortíssima conservadora. A América Latina é um caso um pouco à parte, seguiu um rumo contrário. Na Europa e nos Estados Unidos a visão conservadora teve a primazia, cresceu na última década.

Sul21 - Naquele momento em que surgiu Cena Beatnik tu não lançavas um disco com músicas autorais desde 1993 e então lançou um dos discos que considero estar entre teus melhores. Como tu acompanhas este momento em que vivemos de revoltas árabes e na Europa, estas marchas organizadas pela internet por direitos individuais no Brasil? Pode sair um disco um novo disco a partir deste momento?


Nei Lisboa – Não, não com aquele entusiasmo do Cena Beatnik. Eu estou trabalhando em um projeto de disco que vai tocar em coisas do coletivo, dos dias de hoje, mas não com aquele entusiasmo. Hoje, como eu te falei, enxergo a coisa dispersa demais. Estas revoltas que estão acontecendo são fruto de uma pressão social tremenda, de uma política conservadora, deste receituário que, depois de a gente ter tomado nos anos 1990, estão aplicando lá fora. Mas elas são somente reativas, não são propositivas de nada novo. Não há um caminho novo que a esquerda no mundo tenha conseguido apresentar. Há aqui na América Latina algumas tentativas. O Brasil pode ser um exemplo, mas num sentido mais reformista. E não se apresentaria como um exemplo para estas massas que estão nas ruas em Londres, por exemplo. Mesmo as revoltas árabes muitas vezes são tribais, estão brigando entre si, ou insufladas por interesse europeu e americano. Falta um objetivo. É uma reação desesperada simplesmente. Não posso me alegrar, não posso ter maiores expectativas. Nunca saiu boas coisas do desespero.


Sul21 - Lembra um pouco 68?


Nei Lisboa – Não, 68 foi uma coisa mais ideológica, mais conduzida. Um desespero administrado.


Sul21 - Embora não tenha tido resultados.


Nei Lisboa – É relativo, a gente fala até hoje de 68, porque está na gente de alguma forma. Mexeu com as estruturas. Certamente deixou sua herança, sim.


Sul21 - Tu gravaste um vídeo em apoio a Dilma Rousseff durante a campanha presidencial, mas agora tu estás desiludido com a esquerda, com o governo?


Nei Lisboa – Estava falando do mundo todo, mas, dentro deste contexto, acho que a Dilma vai muito bem. Estou gostando muito do governo dela. Ela está se arriscando justamente em mudar um Estado de coisas. É curioso que se fala tanto, toda hora, em corrupção e no instante em que ela está metendo a mão nisto – instigada ou não pela imprensa- a popularidade dela cai. É de se perguntar se as pessoas preferem ser enganadas, se esta pseudodemocracia não é uma doença social de preferir ser enganado.


Sul21 - Tu tiveste um irmão desaparecido durante a ditadura. Como tu vês este contexto em que ganha força a criação da Comissão da Verdade?


Nei Lisboa – A princípio, com muito bons olhos. A gente está na expectativa de como é que se vai formular esta comissão. Os familiares de desaparecidos tinham um rol de demandas que foram encaminhadas para a ministra de Direitos Humanos e isso ainda está em suspense. Ainda não se sabe que formato terá esta comissão. Aparentemente, até os militares estavam satisfeitos com a primeira formulação. Se for apenas uma comissão pro forma… no Brasil é difícil fazer com que a sociedade se interesse por isto e veja algum significado. Fica mais uma coisa “daquelas famílias, coitadinhas”.

Sul21 - Não é uma coisa que una a sociedade em torno do tema como na Argentina.


Nei Lisboa – Mesmo no Uruguai, na Argentina e no Chile que já andaram bem mais que nós foram processos difíceis, com idas e vindas. O sentimento que as pessoas têm em relação a este período foi forjado no medo. Esquecer isto, virar a página é que as pessoas mais querem. Elas só não se dão conta que não estão virando página nenhuma, porque na medida em que tu não passas a limpo esta história, tu dás margem a que as estruturas vindas de lá estejam se eternizando, por exemplo, na ideologia de Estado que se prega nas Forças Armadas, na impunidade policial que a gente tem e na própria política. A gente fala mal dos congressistas, mas não fez nada para responsabilizar aqueles que sustentaram politicamente a ditadura. O primeiro presidente civil após a ditadura tinha sido presidente da Arena poucos anos antes.


Sul21 - Tu achas que a luta pela Comissão da Verdade seria um bom objeto para a classe artística se envolver?


Nei Lisboa – Não vejo porque a classe artística em especial. É uma questão nacional que deveria envolver a todos. No mínimo, as gerações que viveram mais de perto, para que a gente legue aos mais jovens uma verdade, não um conto de fadas.
Leia a entrevista completa no Sul21.

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