Pessimista, reacionário e retórico, o intelectual mediático voltou a fumar cachimbo
Por Renato Terra
Caros convivas, me chamo Romualdo Fonfonelle. Recorro a estas mal digitadas linhas para brindá-los com os insignes feitiços da erudição. A saber: há tempos, o conhecimento notório deixou a intransponível teia dos acadêmicos para se esparramar pelo Google e adjacências. É imperativo, pois, atualizar os rizomas entranhados nos solilóquios das casas dos saberes e congêneres, ou que espocam ao término das sessões intermináveis de documentários iranianos, ou são impiedosamente decodificados em artigos de publicações universitárias que ninguém lê. Liberto das algemas paradigmáticas de um páthos que emula a si mesmo, venho aqui delimitar o perfil do neoerudito 2.0.
Pois bem, pergunto eu, prenhe de retórica, como formular questões pertinentes sobre os livros líquidos de Zygmunt Bauman ou os filmes secos de Apichatpong Weerasethakul? Com tantos atrativos à procrastinação exegética, quem consegue mergulhar nas obras completas de Nietzsche, Schopenhauer ou Arnaldo Jabor? A primeira lição da nova leva de pensadores contemporâneos vem do filósofo russo Aleksandr Tomanov: “Mais importante do que armazenar informação é saber o que fazer com ela.”[1]
Para tanto, urge estar preparado para sustentar uma argumentação de índole escolástica. O segredo, caros convivas, é ter foco, até porque “ter foco” é expressão que entrou na moda, a despeito das máquinas fotográficas digitais terem foco automático. Diante de um erudito old school, disposto a argumentar sobre a poética nórdica de Ingmar Bergman com o mesmo afinco com que fala das fragrâncias cromáticas de Keith Haring, o postulante a uma cadeira na academia www do saber tem sempre, na ponta da língua, uma teoria buliçosamente construída. De preferência, abissalmente pessimista.
A chave do sucesso? Ser alegórico e reacionário. Afirmações como “Nada influenciou mais o cinema do século XX que o rompimento com o paradigma da linearidade” são perfeitas porque podem ser recicladas: a palavra “cinema” pode ser trocada por “literatura”, “frescobol”, “culinária” ou “par ou ímpar”. Já “paradigma” pode ser intercambiado por “padrão”, “arquétipo” ou “sintagma”. No lugar de “linearidade” ponha “temporalidade”, “modernidade” ou mesmo “doxa”. Se possível, leve três ou quatro sentenças como essa anotadas na carteira. Qual um conta-gotas, dose-as conforme a plateia.
Age de forma primária aquele que titubeia diante de uma pergunta sobre a exposição de fotografias impressionistas de um artista de rua oriundo do Laos. Atua de maneira ingênua o bípede que ergue as sobrancelhas quando o assunto tangencia um filme marginal, um livro maldito ou uma música “do lado B” de um compositor contemporâneo búlgaro de polcas rizomáticas. O conhecimento é uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel, e, portanto, deve ser domesticado e travestido de soberba.
Há que saber lidar, todavia, com os gladiadores da parábola, uma espécie que habita os cafés dos centros culturais, filas de shows com bandas desconhecidas e botequins pés-sujos num fim de noite chuvoso. Ao cair de paraquedas ao lado desse tipo, há que se fecundar um arsenal de armas tergiversais. Invariavelmente, o leque de frases decoradas cai por terra.
O invólucro doce da cultura superior se abre para quem souber pescar nomes ou títulos citados na conversa alheia para soltar associações dilacerantes, sempre ligadas por verbos algo afrescalhados. “Terra em Transe adentra numa estética pueril à la Odair José” ou “David Byrne brinca nos limites da estética oswaldiana”, quiçá “Darth Vader é o José Lewgoy do status quo”. Caso lhe cobrem o desenvolvimento do raciocínio, vá ao banheiro.
Importante: detentores de um nível de exigência fora do comum nunca dizem nada. Peças de teatro, filmes, exposições, programas de tevê são, a princípio, fracos, sem substância, insossos. Para não dar bandeira de mostrar entusiasmo por uma estética batida, o segredo é garimpar algo que, certamente, ninguém conhece: “Admiro mesmo a Banda de Pífanos do Nepal. Eles são influenciados por Bento XVI.”
A segunda lição tem origem em uma famosa declaração de Andy Warhol em uma entrevista à revista Variety: “É preciso vestir-se de modo a criar uma expectativa de que, a qualquer momento, a genialidade pode irromper.”[2]
Os predestinados a ter QI elevado usam óculos com armações grossas e retangulares, tênis All Star coloridos, fumam cachimbo, adornam o crânio privilegiado com chapéus (mas, cuidado: boina, nem pensar), curtem casacos xadrezes e, em quase todas as regiões do Brasil e estações do ano, enrolam um cachecol encardido no pescoço. Comumente, trajam tecidos que emulam as vestes de camponeses medievais da Bavária. Os homens cultivam uma barba cuidadosamente maltratada e as mulheres são ideologicamente a favor da chapinha e contra o cavalheirismo.
O legítimo erudito alegórico é reconhecido a distância pelo corte de cabelo no melhor estilo hype. E faça chuva ou sol, haja progresso material ou não, são radicalmente contra o governo, desde que, é claro, o governo seja do PT. Nesse contexto, é de bom alvitre atacar a Revolução Francesa, os campos da morte do Camboja, o Gulag e o Bolsa Família, fazendo um amálgama bem nutrido. E defender a família, a propriedade e Nossa Senhora de Fátima, mas sempre se dizendo um racionalista sem ilusões.
Para manter a nave da história nos trilhos é desaconselhável usar transporte público. Prefira um Mini Cooper. Impressiona as mocinhas ingênuas. Em contato com elas, aliás, seja abertamente machista. Nelson Rodrigues nunca sai de moda.
Adentrar no fabuloso campo das engenhocas imprescindíveis no mundo pop contemporâneo faz parte das atividades de quem é diariamente atordoado por pensamentos geniais. Mas nada de MP3 Player, câmera digital ou filme em 3D. Ponto para a película, o vinil e o filme analógico (de preferência se houver espaço para montar um estúdio de revelação em casa).
No que tange à parte escrita, o Manual de Redação dos Eruditos Alegóricos, versão 1.2.8, estabeleceu idiossincrasias, pilares e subitens. Ei-las. i. Uso obrigatório de aforismos no início e no final de cada texto; ii. utilização indiscriminada de ponto e vírgula; iii. simpatia irrestrita pelas notas de pé de página; iv. adoção, pelo menos uma vez, dos sufixos pseudo, neo, pós e hype; v. apego a expressões estrangeiras como ma non troppo, sine qua non, en passant e Weltanschauung; vi. uso criativo de neologismos: “chicobuarquização” e “maugostismo”, por exemplo.
Mas, atenção. Ao escrever em jornais e revistas de grande circulação, use os pés.
A alegria é permitida, desde que pareça ingênua. Mas é a angústia de sentir o peso do tempo e da efemeridade dos gestos que adorna a aura daqueles dotados de sensibilidade. Com ela, choverão convites para simpósios, jantares, congressos e passeios de lancha.
[1]Aleksandr Tomanov, in: Paradigmas Soviéticos Contemporâneos ao Caos, 1899, edição Príncipe, prefaciada e comentada por Fausto Silva.
[2]Andy Warhol nunca disse isso.
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