O cinismo como componente fundamental da prática política no Brasil seria ótimo tema para teses acadêmicas que aprofundam a história do País. Um capítulo exemplar para esta tese seria a saída do PR, o Partido da República, da base aliada do governo Dilma Rousseff. O PR parece ter o cinismo como uma espécie de mantra particular subentendido a cada movimento político que o próprio partido faz. Os argumentos utilizados pelos integrantes do PR para deixar a base governista na terça-feira 16, após meses em que a opinião pública ainda digere os fatos, são, antes de qualquer coisa, cínicos.
Pincemos algumas frases. O senador Alfredo Nascimento (AM), um dos cabeças do partido e ex-ministro dos Transportes que caiu após o escândalo, declarou o seguinte: “Não fazemos política cultivando ressentimentos, mas também não abrimos mão da construção e manutenção de relações de confiança, respeito e lealdade junto àqueles a quem prestamos nosso apoio”. Ou seja: ele diz que não está ressentido para, logo depois, dizer que o governo não lhe é leal e que, por isso, deixa a base aliada. Portanto, está ressentido.
“No momento que tais condições (a lealdade do governo) não mais se colocam como base do nosso relacionamento, entendemos ter chegado o momento de atuar com mais autonomia”.
Recapitulemos. A revista Veja publicou, em 2 de julho, uma denúncia de que funcionários graúdos do Ministério dos Transportes, então comandado por Alfredo Nascimento, cobravam propinas a empresas prestadoras de serviço, como empreiteiras e consultorias, para que tivessem uma ajuda na hora de disputar uma licitação. Segundo a denúncia, este dinheiro iria para o próprio PR nas mãos do secretário-geral do partido, o deputado Valdemar da Costa Neto (SP).
A presidenta confiou a um partido aliado um ministério importante para o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), de grande orçamento e também com grandes problemas para resolver. Na melhor das hipóteses, Alfredo Nascimento tinha um vasto esquema de corrupção sob o próprio nariz e não viu. Seu partido não foi leal ao governo que o colocou lá. Mas agora conclama a suposta ausência de lealdade do governo para deixar a base aliada.
As melhores declarações ainda estavam por vir. Alfredo Nascimento afirmou que o partido não aceita ser tratado como “aliado de pouca categoria” ou “fisiológico.” E que por isso deixa a base aliada do governo. Aqui o ex-ministro recorre novamente à inversão de valores: se o partido fosse ideológico, certamente se manteria na base aliada, emitiria um pedido de desculpas e assumiria o compromisso de expurgar seus componentes supostamente envolvidos nas propinas dos Transportes. Perder as tetas de um ministério e sair reclamando por conta disso é um comportamento clássico de fisiologismo político. O PR agiu como um cunhado chato que teve que dividir a mesma casa com o governo federal e, após aprontar todas, é convidado a se retirar e ainda sai reclamando que o governo não teve espírito de família.
A relação do PR com o Ministério dos Transportes não tinha nada de ideológica. Nem sequer é conhecida alguma estratégia do partido para este setor fundamental para o desenvolvimento do País – e aqui cabe uma crítica aos governos do PT, que raramente hesitam em alimentar a sanha voraz de aliados por cargos estratégicos importantes em nome da governabilidade.
Mas não podemos dizer que o PR, partido que surgiu da junção do PL e do Prona, seja um partido sem ideologia. Como boa parte de seus integrantes são da bancada evangélica neopentecostal radical, o partido adora destilar seu preconceito contra os direitos das minorias homossexuais.
O senador Magno Malta (ES) já declarou que a lei de criminalização da homofobia iria criar um “império homossexual” no Brasil. Seu colega Anthony Garotinho já fez chantagem contra o governo para que tirasse de pauta o kit homofobia, que buscava a conscientização escolar sobre os direitos homossexuais. Disse ele, no meio da crise envolvendo Antonio Palocci, em maio: “Hoje em dia, o governo tem medo de convocar o ministro Antonio Palocci (então chefe da Casa Civil). Temos de sair daqui e dizer que, caso o ministro da Educação não retire esse material (kit de combate à homofobia nas escolas) de circulação, todos os deputados católicos e evangélicos vão assinar um documento para trazer o Palocci à Câmara“.
Como se vê, se a saída do Partido da República da base governista torna mais difícil a negociação dos projetos de Dilma no Congresso, também é verdade que o PR era um encosto moral na vida da administração federal. Longe das tetas do governo, é possível que o partido perca ainda mais relevância. O que, vamos combinar, não seria exatamente um desserviço à política do Brasil.
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