Renato Azevedo Júnior: “A lei 1.131 fatalmente levará à dupla fila” |
por Conceição Lemes
Uma decisão da sessão plenária do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), na última segunda-feira, 23 de agosto, deve ter caído como uma bomba nos gabinetes do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e do secretário estadual de Saúde, Guido Cerri.
O Cremesp posicionou-se contra a lei 1.131, que autoriza os hospitais públicos administrados por Organizações Sociais de Saúde (OSs) a vender até 25% dos seus serviços a usuários de planos privados de saúde e particulares.
Também decidiu pedir ao governador e ao secretário de Saúde, ambos médicos, que revoguem a lei, já batizada pelos movimentos sociais de saúde de Lei da Dupla Porta.
“É injusta, inconstitucional, vai contra a ética médica e está errada do ponto de vista ético-social”, condena a lei 1.131/2010 o médico Renato Azevedo Júnior, presidente do Cremesp. “Fatalmente ela levará à dupla fila; será uma forma dos pacientes particulares e de planos de saúde furar a fila.”
Eis a íntegra da íntegra da entrevista que esta repórter fez com o presidente do Conselho de Medicina.
Viomundo – Na última sessão plenária, o Cremesp posicionou-se contra a lei 1.131/2010 e pediu a sua revogação. Como o Conselho chegou a essa posição?
Renato Azevedo – Em dezembro de 2010, tomamos conhecimento desse projeto de lei que foi encaminhado à Assembleia Legislativa pelo então governador Alberto Goldman, que substituía José Serra no governo de são Paulo.
Inclusive fomos chamados à audiência pública para discuti-lo na Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa. E nos posicionamos pessoalmente contra, porque havia a clara possibilidade de criar uma dupla fila no Sistema Único de Saúde.
Ou seja, uma fila muito mais demorada para o atendimento das pessoas que não têm plano de saúde e utilizam exclusivamente o SUS. E outra fila, muito menor, que andaria muito mais rápida, que seria a fila das pessoas que têm plano de saúde.
Ainda em dezembro nós soltamos uma nota contrária ao projeto de lei. Mesmo assim, no apagar das luzes de 2010, entre o Natal e o Ano Novo, a lei foi aprovada e sancionada pelo então governador Alberto Goldman.
A lei previa um decreto regulamentador e uma resolução regulamentadora que deveriam ser elaborados pela Secretaria de Estado da Saúde. E isso foi feito agora, no final de julho, início de agosto. O decreto e a resolução são piores do que o projeto de lei.
De início, dois hospitais públicos gerenciados por Organizações Sociais de Saúde (OSs) ganharam o direito de cobrar dos pacientes que têm plano de saúde e dos pacientes particulares também. São o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, que é o Icesp, e o Instituto de Transplantes, daqui da capital também.
Viomundo – Por que o decreto e a resolução regulamentadores são piores do que o projeto de lei?
Renato Azevedo – Porque o decreto e a resolução permitem a esses hospitais fazer contratos diretos com os planos de saúde e cobrar diretamente de pacientes particulares que, porventura, os procurem.
Logo, a nossa preocupação é evidente. Quando um hospital público faz convênio direto com um plano de saúde, não passa pelo controle do Estado. Mais. O dinheiro arrecadado não vai para os cofres do Estado, vai direto para os cofres do hospital.
Aí, eu te pergunto: Quem vai controlar isso?
Outra pergunta que se faz necessária ao se abrir a possibilidade de o paciente pagante ser atendido nesses hospitais: Por que eu, cliente particular, vou pagar por um serviço no qual posso ser atendido de graça, já que é um serviço público?
Eu mesmo te respondo: Só se for para ter algum privilégio.
E qual o privilégio? Evidentemente furar a fila, ou ter melhores acomodações, ou ser atendido pelo professor doutor. Algum privilégio quem paga, vai ter de ter, porque é um serviço, insisto, que eu poderia ter graça.
Da mesma forma, o plano de saúde. Por que iria pagar, se poderia fazer o tratamento gratuitamente? É porque o cliente vai ter algum privilégio.
Fatalmente, do jeito que estão colocados a lei, o decreto e a resolução, é um fator incontrolável para criação da dupla fila no serviço público. Ou seja, você vai ter uma fila que vai andar mais devagar. É integragada por pessoas que dependem exclusivamente do SUS. E outra fila que vai andar mais depressa, ser atendida mais rapidamente, que é a fila dos que têm planos ou seguros de saúde e os particulares.
Viomundo – Em se tratando de hospitais públicos, essa diferença é permitida?
Renato Azevedo – Totalmente inaceitável, porque todos são cidadãos e todos pagam impostos igualmente. Não se pode ter privilégios em serviços públicos. Do contrário, você cria a fila dupla, o que evidentemente é uma coisa que vai acontecer.
Vamos supor um caso de câncer. O paciente tem suspeita clínica de que é portador de um tumor maligno. No serviço público, esse paciente SUS vai ter de percorrer um processo. Tem de procurar um ambulatório público ou posto de saúde público, onde o médico vai examiná-lo, pedir alguns exames. Isso demora. Aí, ele volta ao médico, que, vendo, de novo, o paciente e os exames, resolve encaminhá-lo para o Icesp, por exemplo.
Já o paciente que tem plano de saúde não precisa percorrer esse longo processo. Ele vai ser atendido por um médico do plano de saúde, fará os exames rapidamente e, na hora em que tiver o diagnóstico, vai direto para o hospital público. Ou seja, é uma forma também de furar a fila.
Então é uma coisa injusta. É uma forma de injustiça social. Além disso, vai contra os princípios do SUS estabelecidos na nossa Constituição. O princípio da equidade no atendimento do SUS é consagrado pela Constituição federal. Então, do nosso ponto de vista, essa lei é inconstitucional.
Viomundo – Do ponto de vista de ética médica se constitui em infração?
Renato Azevedo – Sim. O Código de Ética Médica diz que o médico não pode fazer nenhum tipo de discriminação em relação aos seus pacientes. O médico tem de atender do mesmo jeito o que não paga nada e o que paga muito. Isso faz parte da ética da nossa profissão.
A questão é que nós estamos tratando aqui de instituições hospitalares. Aí, o que eu posso dizer é que, do ponto de vista ético-social, essa discriminação é errada.
Por que eu que não tenho dinheiro para pagar plano de saúde, mas pago os meus impostos, sou cidadão brasileiro, tenhoo direito garantido à assistência pela Constituição, não vou ter o mesmo privilégio que o cidadão com mesmos direitos, só que, quando paga um plano de saúde, ele vai ser atendido mais rápido e melhor do que eu?
Não tem sentido esse privilégio, pois são hospitais construídos e mantidos com recursos públicos, dinheiro de todos os cidadãos brasileiros.
Viomundo – O que o Cremesp espera com essa tomada de posição?
Renato Azevedo – Nós estamos tentando fazer uma ação política, para ver se sensibilizamos o governador e o secretário nessa questão. Afinal, os dois são médicos e já existe uma lei federal que determina o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde por parte dos planos de saúde, quando o usuário utiliza o serviço público. Só que essa lei não é cumprida.
Viomundo – Por quê?
Renato Azevedo – Porque o próprio Estado – aí, leia-se Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), subordinada ao próprio governo federal – não consegue cobrar dos planos de saúde aquilo que os planos de saúde devem.
Viomundo — Por que a ANS não consegue cobrar?
Renato Azevedo — Não sei, mas é estranho. Acho que deveria perguntar pra eles.
Nos primeiros cinco meses de 2011, a ANS cobrou R$ 100 milhões dos planos de saúde, mas só conseguiu arrecadar R$ 20 milhões. De 2006 a 2011, a taxa de sucesso da ANS nessa cobrança foi de apenas 12%.
Anualmente, os planos deveriam ressarcir ao SUS em torno de R$ 500 milhões. É um dinheiro que faz falta ao serviço público. É gente que foi atendida no sistema público e que pagou o plano de saúde, só que o plano faz de conta que não é com ele.
Viomundo – O que se poderia fazer em relação aos planos e à própria ANS para que o ressarcimento se efetivasse?
Renato Azevedo – Ação política. Fortalecer a ANS no sentido político e no sentido também de que não fosse influenciada pelos planos de saúde.
Essa ação política tem de ser não só das entidades médicas, mas da própria sociedade civil brasileira. A sociedade tem de se mobilizar para exigir que os planos de saúde paguem o que devem ao SUS e, principalmente, que haja maior financiamento e melhor gestão dos recursos do Sistema Único de Saúde.
O Brasil é um país totalmente esquizofrênico e altamente injusto. A saúde suplementar atende quase 47 milhões de pessoas. A saúde pública, 140, 150 milhões.
Só que o Brasil gasta mais com saúde complementar do que com saúde pública. Com planos e seguros de saúde, o país gasta o equivalente a 4,5% do PIB (Produto Interno Bruto). Já com saúde pública, 3,5% do PIB.
Viomundo – Qual a expectativa do Conselho agora?
Renato Azevedo — Nós tomamos a decisão de pedir a revogação da lei 1.131 na segunda-feira à noite. Espero sinceramente que a gente consiga sensibilizar o governador e o secretário de saúde do estado. Vamos ver?
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