Na próxima segunda-feira, dia 03/10, o salão nobre da Faculdade de Direito do Recife será reaberto em comemoração aos 100 anos do prédio histórico. O convidado para proferir uma palestra alusiva à data foi o ex-senador Marco Maciel e isso virou motivo de polêmica. Alguns professores ameaçam boicotar a solenidade porque Marco Maciel foi aliado da ditadura militar.
O convite ao ex-senador para palestrar ensejou o envio da seguinte carta à diretora da Faculdade, Luciana Grassano, e aos colegas docentes, pela professora Larissa Maria de Moraes Leal.
Cara Diretora do CCJ - UFPE - Faculdade de Direito do Recife, Profa. Dra. Luciana Grassano
Caros colegas docentes,
Cumprimentando-os cordialmente, venho, preliminarmente, parabenizar nossa Diretora, Profa. Luciana Grassano, por mais este importante passo na restauração de nossa casa, o prédio da Faculdade de Direito do Recife. Um trabalho primoroso, bem conduzido e realizado que, sem dúvidas, nos trouxe mais que conforto. Temos, atualmente, a satisfação de exercermos nosso ofício em um edifício dotado da dignidade que sempre lhe foi devida. O cuidado deferido à nossa edificação tem reflexos largos, porquanto seja toda a sociedade beneficiária do resgate de integridade desse patrimônio histórico. Assim, registro meus agradecimentos sinceros e fraternos, bem como o meu reconhecimento.
Por ocasião da Solenidade de Reabertura do Salão Nobre, venho, ainda que comprendendo a circunstância de absoluta felicidade institucional, registrar meu singelo e firme protesto referente ao Conferencista brindado pela ocasião. Foi no Salão Nobre que muitos de nós defenderam suas dissertações de mestrado, teses de doutorado, assistiram e participaram de debates acalourados; foi também neste salão que, em várias situações, professores e alunos reuniram-se simplesmente para exercerem o seu legítimo direito de pensar, dialogar e dar máxima expressão à própria idéia sobre a qual construimos, diariamente, a nossa Faculdade.
Todos esses fatos fazem parte da história da Faculdade de Direito do Recife, tão bem contada pelo saudoso Prof. Dr. Gláucio Veiga. No volume 2 de sua obra sobre a história das ideias, das ações e do papel de nossa Faculdade, Prof. Gláucio dedicou seu trabalho a todos aqueles que morreram porque ousaram pensar. Em tempos difíceis, nossa Faculdade representou, ao menos no imaginário de muitos, um oásis onde era possível pensar! Entrementes, sabemos que, nesses mesmos tempos, pensar na Faculdade tornou-se algo perigoso. Sob as vistas dos ditadores, foram os professores e alunos da Faculdade vítimas preferenciais de restrições e toda sorte de agressões a direitos humanos.
Esses tempos, infelizmente, são reféns de nossa memória. É em nome dessa memória - que não podemos negligenciar - que apresento meus protestos referentes à eleição do ex-senador Marco Maciel como conferencista da ocasião de reabertura do Salão Nobre da Faculdade. Entendo, com meus botões, que sua presença, em condição tal de honraria - e acredito ser de honra extrema proferir conferência no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife, em sua reabertura - fere a memória viva de lamentáveis fatos ocorridos na própria Faculdade no final da década de 60 e durante a década de 70. Fere diretamente professores da casa, que, então, foram perseguidos porque pensavam; fere professores que foram, inclusive, expulsos de casa, para tornarem-se estrangeiros em busca de Justiça em outros países, exilados da Faculdade; fere a mim, pessoalmente, que vivenciei a potencialidade lesiva da ditadura, e convivo com fotos de parentes que sequer tive oportunidade de conhecer, em cartazes de busca por desaparecidos afixados em nosso prédio. Fere, por fim, em minha opinião, todos os nossos alunos que, sem experiências pessoais sobre esse período tenebroso, precisam de nossas memórias e de nossa voz para conhecerem esse mal absoluto que é a restrição da liberdade.
Não tenho nenhuma queixa pessoal dirigida ao ex-senador Marco Maciel para apresentar aqui. O que tenho é a convicção e o conhecimento de sua trajetória política; nos tempos em que convivemos com a divisão entre ditadores e cidadãos, sei que nossa Faculdade ficou aliada aos cidadãos, postura contrária do Conferencista convidado.
Por certo, como acadêmica, não devo ter preconceito com ideias. Mas a distância no tempo, pouco mais de 30 anos, apenas o tempo de minha vida, não pode ser suficiente para apagar de nossa história e memória o passado a que aludi.
Se, durante a ditadura, o maior desafio do cidadão era pensar e manifestar-se, hoje, penso eu, o que mais nos constrange é o dever de não calar, de não tolerar por comodidade e de não negligenciar nosso legado. São tempos diferentes, é claro. Os protestos desapareceram para dar lugar ao individualismo e à busca de conquistas patrimoniais. Não há voz nas ruas ou nas praças. É o silêncio obsequioso, chamado de tolerância, que incomoda alguns poucos legatários de tanto sofrimento do passado.
Meu protesto, portanto, segue as diretrizes atuais: infelizmente a presença do conferencista constrange a mim, em tão alta medida, que não me permitirá participar desse momento histórico. Protesto por meio dessas palavras, de minha ausência e de um pedido. Se algum documento resultar da solenidade da próxima segunda-feira, dia 03 de outubro, solicito que minha ausência seja registrada como forma de protesto silencioso e pacífico.
Eu não sei se nós teremos os benefícios de, dentre nós, haver um novo docente dedicado a contar a história da Faculdade de Direito do Recife, como fez o Prof. Gláucio Veiga; mas, se houver, os relatos da próxima segunda-feira farão o histórico dos fatos passados nas décadas de 60 e 70 do século XX darem uivos de terror... o terror da superação das ideias e da liberdade pelo tempo; o terror da negligência da história dos que se foram, em nome do que agora está.
Cordialmente,
Profa. Dra. Larissa Maria de Moraes Leal.
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