Emir Sader, via Carta Maior
No momento em que foi vítima do atentado de um búlgaro, em uma concentração na Praça São Pedro, no Vaticano, o Papa João Paulo I conseguiu dizer: “Por que eu?”
Não teria se dado conta que era porque foi eleito o representante de Deus na Terra? Também não teria se dado conta do papel político central que assumiu na política mundial? Tampouco se poderia entender por que ele se lamentaria de abandonar este Vale de Lágrimas, ainda mais ele, que teria garantido o Reino dos Céus pela vida eterna?
Foi um momento de rara humanidade do Papa. Ele, a quem eu havia visto, prepotente, na Nicarágua sandinista, tentando dar lições de democracia a um regime popular desde um Estado teocrático. Ele, que havia retirado a mão, no aeroporto, quando Miguel D’Escotto – sacerdote e ministro de Relações Exteriores do governo nicaraguense – se ajoelhou, humildemente, para beijar sua mão. Ele, que reiterou várias advertências ao povo nicaraguense que o interrompia em seu discurso na Praça Augusto César Sandino, no centro de Manágua, quando se davam conta que ele se atrevia a criticar a FSLN, e acabou se retirando da praça, sem terminar seu discurso – a que ele havia acorrido com uma elegante bata branca e um imponente bengala.
Esse mesmo papa teve medo da morte no atentado, a que sobreviveu, e pôde seguir representando a seu Deus neste Vale de Lágrimas.
O filme de Nanni Moretti – que entrará logo em cartaz no Brasil, – se chama Habemus papam: o psicanalista do papa. Um cardeal – um Michel Picolli envelhecido, mas sempre extraordinário – é eleito papa, mas não quer, tem medo, entra em crise, chora, se isola em seu quarto, enquanto um cardeal avisa aos aglomerados na Praça – turistas e uma parte de fieis – que o novo papa já foi eleito – conforme a fumaça branca –, mas que estava orando em seu quarto, pedindo força a Deus para assumir sua representação na Terra.
Chamam um psicanalista – representado pelo próprio Nanni Moretti – para conversar com o papa, mas com a recomendação expressa de não tocar em temas como a infância do papa, sua mãe, seus sonhos, além da presença de todos os cardeais em volta, o que leva ao fracasso do apelo a Freud.
O papa acaba fugindo e sai, com roupas civis, pelas ruas de Roma, convivendo com as pessoas como se fosse um mortal qualquer. Providencia-se um funcionário do Vaticano para ocupar seu quarto e fazer aparecer às vezes sua mão para a multidão reunida na praça, outras vezes apenas agitando a cortina, acendendo e apagando a luz. Esse funcionário fica comendo e dormindo no quarto do papa, os cardeais acreditando que é o papa que está ali, inclusive quando o serviço do Estado do Vaticano coloca um CD e toca Mercedes Sosa cantando Todo cambia, que os cardeais acompanham, radiantes, crendo que era um sintoma do estado de ânimo festivo do novo papa.
Como o Concílio não terminou, porque o papa ainda não aceitou sua nomeação, nem os cardeais, nem o psicanalista podem sair. Então este organiza um alegre campeonato de vôlei entre os cardeais representados no Concílio, como passatempo e forma de descarregar as tensões. O Vaticano como estado está em jogo. O novo papa está nomeado, não pode ser substituído por outro, nem se sabe o que fazer com ele, se não assumir o cargo.
Toda a trama funcional da nomeação de um cardeal como representante de Deus na Terra fica pendendo por um fio, enquanto o nomeado passeia alegremente por Roma, vai ao teatro, come em restaurante, conversa com as pessoas do povo, feliz, em seu verdadeiro mundo, enquanto está em suspenso o cargo de Deus na Terra e o povo continua esperando seu discurso. Não conto o final, mas basta isso para revelar a humanidade de uma pessoa comum, que tem medo, que chora, que entra em crise, que escapa das responsabilidades que lhe querem impor, para fazer do filme uma grande película.
O mesmo exercício de humanização que tinha feito Saramago em seu Evangelho segundo Jesus Cristo e num de seus últimos livros – Caim. Neste, Caim conversa com Deus sobre o papel que lhe atribuiu na Terra, suas responsabilidades e o questionamento de Deus ao impor-lhe o conflito com o irmão e a imagem negativa nesse conflito. Outras circunstâncias, como a de Abrãao, a quem Deus pede que ofereça a vida de seu filho como sacrifício, são reavaliadas por Caim, que se pergunta que Deus todo bondoso é esse, que impõe a um pai o pior dos sacrifícios?
O filme de Moretti foi execrado pelo Vaticano, que se sentiu nu diante da parábola – talvez não tão irreal –, dado que se propala que um dos papas anteriores a João Paulo II, que teve papado curto, teria morrido em circunstâncias estranhas, associadas a suas visões iconoclastas, entre elas a de que Deus seria mulher ou homem e mulher, com todas as consequências para o tema de gênero que traria para o Vaticano e à Igreja Católica. Em suma, a parábola pode ajudar a entender mecanismos desse estranho Estado teocrático que é o Vaticano. E diverte muito. Sem dúvida, um filme à altura das grandes comédias do cinema italiano.
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