Carlos Lamarca e o embaixador Giovanni Enrico Bucher |
Na História do Brasil existem acontecimentos surpreendentes, mas infelizmente pouco conhecidos do grande público. Um deles é o sequestro do Embaixador Suíço, que foi trocado por 70 prisioneiros que estavam sendo torturados nos porões da ditadura militar. Esta ação foi liderada por Carlos Lamarca da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. Durante 40 dias angustiantes os guerrilheiros mantiveram o embaixador Giovanni Enrico Bucher em cativeiro, aguardando a resposta dos militares. Dentro do “aparelho” clandestino também estavam a mulher de Lamarca: Yara Iavelberg e Alfredo Sirkis. É ele quem narra essa emocionante história no livro Os Carbonários.
O GRANDE ENGARRAFAMENTO
Curiosos e policiais olham o local do sequestro
Surgiram no espelho às 9,15 hs., em ponto.
Abri a porta do Volks bege para os três que chegaram a passo apressado, vindos do outro lado do muro. A rua do transbordo era serpenteada de paralelepípedos, uma das curvas à volta de um muro fortificado.
O fuscão turqueza, que instantes antes os deixara do outro lado dessa curva, passou apressado ladeira acima. Nisso Ivan já segurava 1 porta e fazia sinal pro embaixador entrar. Paulista mão no Smith & Wesson, dava a cobertura.
Me deparei com ele, de terno e gravata, rosto carnudo, avermelhado, um nariz grosso, robusto jeitão europeu bem nutrido. Um par de olhos assustados.
— You will be well treated. (Você vai ser bem tratado.)
Assumi de novo minhas funções de intérprete oficial da VPR.
— Porrra. - . Eu não sou americano, sou suíço! Não tenho nada com isso. Rapazes vocês, certamente cometeram um engano! Falava um português excelente, com leve sotaque.
— É o senhor mesmo que queremos. Imperialismo ianque já pagou quinze presos, Japão cinco, Alemanha quarenta. Tá na hora dos bancos suíços comprarem a vida dalguns companheiros torturados. A Suíça é a quarta investidora na miséria do nosso povo.
Subimos as ruas serpenteadas, ultrapassando um bonde que apareceu pela frente. Pequeno trecho de Santa Teresa e toca pro Rio Comprido, ladeiras abaixo. Depois Tijuca.
São Francisco Xavier, trânsito desimpedido, sinais verdes a favor. Nenhum cambura visível.
9.25 hs. Já devem ter dado o alarme, pensei.
— Teve tiro na ação? Ivan diz que sim.
— Paulista teve que ferir o guarda-costas que reagiu e quase acertou um tiro no Daniel. Puxou uma tremenda PPK. Depois apareceram dois guardas de trânsito. Tinha um desastre perto dali. Botei a INA prá fora do carro, eles voaram pro chão, um bateu até com a cabeça no poste. A saída foi incrível, pela calçada. O sinal em frente o Fluminense tava fechado, perdemos mais de um minuto.
Pensei no esquema de contra-informação que já devia ter sido acionado naqueles instantes pelos simpas na equipe de inteligência. Tocavam telefones de delegacias e redações de jornais com a deduragem de “uma Kombi verdinha com uns elementos estranhos, pinta de terroristas e um senhor de mais idade”, alhures na floresta da Tijuca. Ou “uma Rural Wlllys estranha”, com rapazes barbudos e um caixote esquisito, na subida do Cosme Velho prá Santa Tereza.
Enquanto isso, nos distanciávamos pelos subúrbios da Central. Na altura de Engenho Novo, o primeiro camburão da jornada. Sirene ligada e manobrava no calcadão, em frente à delegacia. Cruzamos por baixo dos trilhos da Central e seguindo a rota prevista, por um emaranhado de ruas secundárias, rápidas passagens por algumas artérias. Em Cascadura, parei uns instantes numa rua deserta prá Ivan tirar as mar-tarochas.
9,30 hs. Do transbordo até ali o carro viera com um par de chapas “frias”, cobrindo as legais. Estavam atarrachadas naqueles acessórios que o VW fornece aos fusquinhas mais chiques, uma armação de metal cromaido. Punha-se uma tira forte de elástico prá prender a armação sobre a placa legal.
Em menos de três segundos se calçava ou descalçava. Por que Marta Rocha? Até hoje é mistério.
lvan voltou com elas e jogou debaixo do banco. Paulista papeava animadamente com o embaixador, agora mais calmo. Prosseguimos a viagem rumo a Madureira. Paulista cuidava do enxoval do diplomata para a crucial entrada na infra do rapto.
Guarda-pó de pintor, boné claro e os óculos escuros de ceguim.
Era mais simpático o disfarce que o caixote da vez anterior. Além do que a infra da Tacaratú era muito mais devassável do que a do von Holleben.
Madureira, estrada do Sape, Portela querida. Orações a todos os deuses e santos de todas as crenças prá que a ladeira da Tacaratú estivesse vazia, vazia, naquela abafada manhã de 7 de dezembro.
Evitamos o quartel da PM e chegamos pela transversal que cortava rua mais acima. Rua deserta, saravá!
9.45 hs. Fiz meia volta frente a casa e colei no portão, sobre a calçada. Ivan saiu ligeiro seguido de seu Giovanni, o pintor de paredes e Paulista,. sempre na cobertura.
— O seu João, vem cá ver a parede que tá precisando duma mão.
Num segundo tinham cruzado o portão e a varanda. A porta que se abriu e sumiram, enquanto eu tirava o carro da calçada, estacionava pouco 1 mais abaixo. Antes de entrar, dei uma panorâmica na rua. O dia era muito quente e preguiçoso, trinavam insetos e não se via ninguém, nem nas calçadas, nem nas janelas. Um rádio tocava alto na casa dos vizinhos, às voltas com a louça do almoço, as roupas do tanque, os cheiros matinais.
O embaixador da Suíca, Giovanni Enrico Bucher, já estava instalado nas poltronas da sala do meio, quando cheguei. Em mangas de camisa, vermelho e transpirando, fumava seu Benson & Hedges. Paulista lhe explicava algo, Helga fazia um suco de maracujá e lvan revistava sua pasta.
Estavam todos de capuz negro, mas, faziam o possível para atenuar a imagem um tanto tenebrosa.
Bucher mais sossegado, ar até meio cúmplice, pediu-nos que queimássemos um documento que trazia na pasta. Um informe reservado de Berna para a embaixada na qual vinham tratados vários temas, inclusive a situação brasileira. Havia algumas observacões críticas sobre questões da direitos humanos, nada muito duro, mas, o suficiente para que temesse um problema diplomático como o ocorrido com Elbrick.
— Nunca se sabe o que pode acontecer, argumentou.
Paulista concordou com o pedido de Bucher prá criar um ambiente colaboração mútua, agora que estávamos todos na mesma canoa.
Deixamos que ele próprio queimasse o memorando. Helga trouxe um balde com álcool no fundo e acendeu, enquanto Bucher picava um monte de vezes o documento, deixando cair um por um os pedaços que iam sendo consumidos pela chama, dançando alto.
Parecia se divertir com a ocupação.
Mais tarde chegou Daniel com um sorriso excitado. Já estávamos preocupados com a sua demora.
— Pô, cês não imaginam como tá a cidade! Eles fecharam tudo, tudo! Pararam o trânsito prá nos pegar. Não sei como vocês passaram, vim de ônibus no Engenho Novo e pelo Meier já estava o trânsito parado, os homis revistando todos os carros.
O rádio, onde a notícia já tinha estourado há mais de meia hora, confirmava a situação. O trânsito em toda cidade foi bloqueado, para que centenas de milhares de veículos fossem revistados, em busca do embaixador suíço.
No centro da cidade, regiões extensas das zonas sul, norte e subúrbios, o enorme dispositivo policial-militar, desencadeado, menos de cinco minutos após os acontecimentos da rua Conde de Baependi, paralisava as gigantescas filas de automóveis e coletivos.
As forças da ordem e da lei filtravam os veículos. Dezenas de suspeitos já estavam detidos e esperavam o desvendar do caso rapidamente — segundo fonte dos órgãos de segurança nacional, precisava o locutor.
E passamos o resto da tarde ouvindo, de meia em meia hora, as notícias do maior engarrafamento da história do Rio de Janeiro.
O SUÍÇO
Casa onde o embaixador suíço ficou "guardado" por 40 dias
— Compreendo que vocês queiram de alguma maneira salvar seus companheiros. A situação dos presos políticos desse continente, e desse país, — porque não dizê-lo francamente? — é péssima. Mas, não posso deixar de estranhar (e de protestar), por que diabos, logo eu? Eu não tenho nada a ver com essa situação. Como embaixador intercedi pelo Jean Marc, presidente da UNE, tentei valer sua dupla cidadania. Sua condição de suíço. Não houve nada a fazer neste caso. O chanceler Gibson Barbosa me respondeu: na dupla nacionalidade, prevalecia a do país onde se encontra o cidadão. Ele tinha razão, pelas leis internacionais.
Suspirou, remexeu na poltrona e continuou a argumentar para os capuzes negros.
— Levantei até com o vosso, quer dizer... o deles, chanceler Gibson, que é um homem ponderado, devo dizer-lhes — o problema das torturas que, segundo fui informado pela família, o rapaz sofrera. O chanceler me respondeu que realmente tinha havido alguns casos escassos de responsabilidade de alguns policiais comuns. Que o exército já tinha coibido essas práticas por interferência direta do próprio presidente Médici. De resto, que este era um assunto interno brasileiro e que estranhava um pouco a minha insistência. À saída, já menos irritado, me garantiu que os excessos já haviam sido totalmente sanados, graças a Deus.
— Pô, e o senhor acredita nisso? Minha voz se fez céptica sob o capuz.
— O ministro é um homem distinto. Mas, aí existe naturalmente Ia raison d’état. Se vocês me disserem que as torturas continuam não vou deixar de acreditar. Disse acrreditar, com sotaque no crê.
— Conheço bem o país de vocês, estou aqui há cinco anos. Conheço os empresários, mas, também já freqüentei favelas. Acho a miséria espantosa. Mais espantosa a causa do luxo da pequena parcela rica, riquíssima.
— isso aí. O capitalismo. Por isso que a solução é o socialismo. A revolução.
Eu preparava-me prá nova esgrima, com novo embaixador.
— Às vezes é a única saída, em países atrasados. Talvez alguma forma de socialismo seja a solução pro Brasil. Mas acho difícil vocês conseguirem isso. Talvez impossível. São poucos e o povo não os conhece. É analfabeto e trabalha para comer todos os dias. Não liga para política e parece contente como Carnaval e o Tricampeonato.
— Podemos tentar, né? Os bancos suíços com certeza é que não vão.
Ele se remexeu novamente, enxugou o suor da testa e reclamou do calor dos diabos. Realmente, fazia quase 40º naquele dia.
— Eu sou o representante do governo suíço, os bancos têm outros canais próprios. Sou um simples diplomata de carreira. Represento meu país nos vários continentes. Minha interferência pelo Jean Marc von der Weid, teve seu custo. Gibson passou a me tratar friamente nas recepções. Sei que o ministro Buzaid não gosta de mim. Homem estranho, tem uma cara horrorosa.
Ele agora estava com toda a corda.
— Bem, diríamos, então, que o senhor está praticamente do nosso lado?
Levantou as duas mãos num gesto de não-me-comprometa, e sentenciou com a voz ligeiramente empostada e sotaque um pouco mais perceptível:
— Não, porque sou contra uma violência que sofri. Além disso estou com receio que aconteça algum problema. - O que vai acontecer se descobrirem a casa?
— A segurança da casa é perfeita. Ninguém nos viu entrar, a repressão perdeu completamente o traço. Agora se descobrirem resistimos até o fim e morremos todos.
2 comentários:
Foi uma operação fantástica... ousada, bem no nariz dos militares...
Milimetricamente planejada... Fantástica, mesmo!
Abração, cumpadi Leandro!
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