Por Pedro Estevam Serrano*
A morte do ditador Muamar Kaddafi põe fim, indiscutivelmente, a um período histórico da nação líbia. A esperança do mundo é que daí nasça um período de paz e democracia para este povo já tão sofrido
Kaddafi é um líder que não deixa saudades. Um terrorista de Estado, exemplo fácil de ser lembrado em sala de aula para ilustrar as formas de se usar o poder para cometer crimes lesa-humanidade.
Entretanto, o grau de civilização de um sociedade é medido pela forma como trata seus culpados.
E, convenhamos, a morte de Kaddafi, na forma como ocorreu, em meio a um
tratamento indigno, degradante e cruel com o prisioneiro (como
registraram as imagens divulgadas) foi o retrato de uma governabilidade
global que cada vez mais se aproxima em métodos do mais rasteiro banditismo
Se as forças internacionais, agindo como força policial e não como Forças Armadas, optaram, corretamente ou não, ao arrepio da soberania do
povo líbio, por intervir militarmente no conflito civil daquele país,
por evidente haveriam de se responsabilizar pelo tratamento jurídica e
humanamente adequado dos prisioneiros que de alguma forma contribuíram para com seu aprisionamento.
Com a sofisticação dos instrumentos tecnológicos que dispõem os
serviços de inteligência das nações envolvidas nas operações é difícil
acreditar que tudo tenha ocorrido ao mero acaso, como declarou o
comandante das tropas insurretas líbias – que aprisionaram Kaddafi. Mais
improvável ainda é supor que o descontrole tenha sido tanto ao ponto de o referido comandante presente no local não ter conseguido controlar seus subordinados.
Para convalidar as suspeitas, cito a indesculpável decisão do atual governo líbio de vedar qualquer exumação ou perícia no corpo (decisão mais tarde revista).
Da mesma forma que ocorreu na morte do terrorista Bin Laden, não apenas direitos humanos fundamentais do prisioneiro foram desconsiderados, mas suprimiu-se algo que seria de todo interesse público: o legítimo processo junto ao Tribunal Penal Internacional.
No caso de Kaddafi a situação é mais instigante. Kaddafi foi chefe de Estado por décadas. Durante este período contou com o apoio, suporte ou tolerância de Estados ocidentais às atrocidades que praticou.
Seria de toda importância para a opinião publica global ouvir seus
depoimentos na Corte Penal Internacional. As culpas de Kaddafi são
conhecidas e evidentes, mas não as de seus parceiros em diferentes
momentos históricos. Certamente lideres de países ocidentais de
diferentes matizes ideológicas ao menos teriam suas biografias maculadas.
Por conta deste evidente e relevante interesse político em
eliminar Kaddafi é que a utilização da expressão “queima de arquivo”,
jargão usado para designar o homicídio de testemunha ou comparsa para
evitar seu depoimento, me parece adequada ao menos como suspeita a ser
verificada com relação à morte do prisioneiro.
Diversos autores contemporâneos já têm apontado como as forças armadas dos Estados nacionais das nações ocidentais, em especial as de primeiro mundo, vêm se transformando
paulatinamente, de forças de defesa territorial e da soberania de países
em força policial a serviço de uma governabilidade global que tem mais
feição Schimittiana que liberal, insubmissa que é a qualquer regra de
direito.
Ocorre que nos casos das mortes de Bin Laden e Kaddafi vemos estas forças se degradando até mesmo do já degradado papel de força policial global para adotar atitudes de verdadeiro banditismo, “queimando arquivos” às abertas e sem qualquer contestação dos órgãos da mídia comercial.
Diga-se, estes terroristas mortos não deixam saudades, mas a
ausência de seus depoimentos perante uma corte internacional, no devido
processo legal, que certamente os condenariam, deixa um vácuo histórico
insuscetível de reparação, além da evidente agressão aos direitos
fundamentais do homem perpetrada por nações que se dizem civilizadas.
*Pedro Estevam Serrano é advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário