Um homem em seu leito de morte vira-se para o filho, já adulto, e lhe conta um segredo da vida inteira: "Eu o comprei de um padre em Zaragoza". O que poderia parecer trecho de um folhetim barato aconteceu este ano, na Espanha, e desencadeou uma torrente de histórias semelhantes em todo o país, trazendo à tona um trauma nacional, encoberto por um véu de vergonha e crueldade.
A história começou na Espanha franquista e é reveladora de como as ditaduras podem ser mais cruéis do que imaginamos. A estimativa é de que milhares de bebês tenham sido roubados de suas mães por enfermeiras, padres e médicos, numa prática que, incrivelmente, se estendeu até os anos 1990. Mais de 900 casos estão sendo investigados, novas histórias continuam a ser reveladas, e os advogados acreditam que mais de 300 mil recém-nascidos tenham sido levados de suas mães logo após o parto.
As vítimas eram filhos de pais considerados "indesejáveis" pela ditadura franquista, a maioria de famílias das classes trabalhadoras. Uma espécie de limpeza ideológica, com aprovação do Estado e participação de médicos e da poderosa Igreja católica sob o período de Franco. Posteriormente, o pretexto se tornou econômico, com crianças sendo retiradas de mães pobres para serem entregues a famílias abastadas e sem filhos.
Em contundente e emocionante matéria na BBC, a jornalista Katya Adler valeu-se da condição de ter dado à luz em uma clínica fundada por um médico envolvido com os sequestros para entrevistá-lo, solicitando uma consulta. O doutor Eduardo Vela, cujo nome aparece em muitas investigações, a recebeu em sua casa, em Madri, e confrontado com a revelação de que estava diante de uma jornalista, pegou um crucifixo de metal sobre a sua mesa e disse que sempre atuou em nome de Deus.
Esta história permanecia encoberta até os dias de hoje porque a anistia acordada entre as forças políticas no processo de transição da ditadura franquista para a democracia impedia as investigações. Mesmo em se tratando de crime contra a humanidade, os casos não eram levados adiante pelo temor de tocar em velhas feridas e de romper o pacto que silenciou as atrocidades do período mais terrível da história espanhola.
O governo espanhol ainda resiste a abrir um inquérito nacional, mas as famílias estão indo à luta, descobrindo que não existem corpos nas supostas sepulturas de seus filhos e buscando justiça. Muitos espanhóis acorrem às clínicas para exames de DNA em busca de seus pais verdadeiros. A cicatriz espanhola ainda não se fechou e continuará a sangrar até que sociedade e Estado tenham a dignidade de encará-la de frente.
O Brasil também precisa enfrentar este processo. Parece que temos vergonha da nossa própria história, de nos revoltarmos e de não aceitarmos que um jovem de 26 anos, como Stuart Angel Jones (foto), preso pelo Estado, tenha tido sua boca presa ao cano de descarga de um jipe e sido arrastado pelo pátio interno de uma base militar até a morte. E que sua mãe, assim como as mães espanholas, em busca de justiça, tenha morrido num acidente de causas suspeitas, em São Conrado, no Rio de Janeiro.
Batizar o túnel que liga a Gávea a São Conrado com o nome de Zuzu Angel foi uma forma de começar a enfrentar essa história. Mas falta muito mais. É preciso saber quem foram os executores das torturas, desaparecimentos e mortes, e seus mandantes. Seus nomes precisam ser revelados, como o do doutor Eduardo Vela, em Madri, mesmo que não venham a ser punidos em nome de uma Lei da Anistia obsoleta, estabelecida quando a correlação de forças era completamente diferente da atual.
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