segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Urariano Mota: O Cabo Anselmo, a ditadura, o Roda Viva e a Folha

por Conceição Lemes

O Cabo Anselmo é o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, nesta segunda, às 22h.

O jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota nunca o viu pessoalmente,  mas o “conhece”, como me contou em entrevista em junho de 2009: “Conheço o Cabo Anselmo por seus cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele perseguiu, traiu e matou”.

Na época, Urariano estava lançando o livro “Soledad no Recife”.

Soledad era uma jovem idealista, corajosa, doce e linda, muito linda. Foi torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo  cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga.

Por isso fiz um pedido especial ao Urariano, para  que nos escrevesse algo  sobre o Cabo Anselmo e o Roda Viva. Afinal, estamos num momento emblemático, discutindo a Comissão da Verdade.

O texto de Urariano, sensível como sempre, está abaixo. Mais abaixo a entrevista que fiz com ele para o Viomundo sobre Soledad e o livro.


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por Urariano Mota, especial para o Viomundo

José Anselmo dos Santos, ou Daniel, ou Jadiel, ou Jônatas…  ou mais simplesmente Cabo Anselmo, que se apresenta no Roda Viva hoje à noite, deve ganhar uma vez mais todas as luzes para falar o que entender, como entender e quando entender. Nem de longe será apertado, como entregou para apertos, choques, afogamentos, e degradações que não se fazem sequer a animais em matadouros públicos, homens e mulheres que lutavam por um Brasil socialista.

No momento em que ele volta à cena, vai ser votada por uma exigência social a Comissão da Verdade. Nessa hora é bom esclarecer que não se deseja a torturadores e agentes duplos o mesmo amargo remédio que aplicaram nos militantes de esquerda de todas as filiações, até as mortes por suplícios os mais cruéis. Não, deseja-se que apareçam à luz os seus crimes, com suas caras e responsabilizações.

Quando se menciona que ele não será apertado no Roda Viva, mais uma vez, entenda-se que não se deseja um constrangimento, uma violência, um interrogatório contra a sua esquiva pessoa. Deseja-se apenas que o repórter cumpra um insubstituível dever ético: mostrar o criminoso com a sua cara e crime apenas. Mas isso não virá, porque os indícios e histórico de suas entrevistas no Brasil não permitem melhor conclusão. Fala-se que um dos  entrevistadores será o blogueiro do Alerta Total, um indivíduo de extrema-direita, que entre outras coisas já postou nestes dias:

“O artesão septuagenário José Anselmo dos Santos deverá enviar uma carta à Presidenta Dilma Rousseff apelando, em tom dramático, para que lhe seja concedido o elementar direito a uma Carteira de Identidade… O comuno-sindicalismo o transformou no mítico Cabo Anselmo. A malandragem criou a versão atualizada do também marinheiro João Cândido – aquele também transformado no ‘Almirante Negro’, no começo do século, para afrontar os esquemas militares… O governo comete o crime civilmente hediondo de negar a José Anselmo este direito elementar a qualquer cidadão: uma cédula de identidade que comprove que ele é ele mesmo. Lamentável é que a turma dos direitos humanos é conivente com o holocausto documental contra José Anselmo dos Santos”.

Boas perguntas teremos de um entrevistador com esse nível de pensamento. Ainda hoje na Folha de São Paulo se escreveu, na falta de melhor verbo:

Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denunciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura”.

O que é isso? Em um só parágrafo há tantas mentiras, omissões, que nem se percebe o mais criminoso: Soledad Barrett Viedma, a sua esposa e companheira, se transforma em namorada, sem qualquer menção a seu estado de gravidez. Talvez para não chocar os nervos e corações mais sensíveis de torturadores impunes até hoje.

Hoje, no Roda Viva, qualquer semelhança com as entrevistas anteriores do Cabo Anselmo não será mera coincidência.


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Soledad no Recife em julho


Post trazido do Viomundo antigo;  publicado em 27 de junho de 2009


Soledad Barret Viedma

por Conceição Lemes

Soledad Barret Viedma. Eu a “conheci” ao ler uma coluna do jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota, em Direto da Redação. Fascinou-me na hora. Uma jovem idealista, corajosa, doce e linda, muito linda. Foi torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga. O texto era tão terno, carinhoso, delicado. Confesso que me passou pela cabeça os dois terem sido namorados.

Emocionou-me tanto a história, que, imediatamente, quis saber mais de Soledad. Daí nasceu esta conversa com Urariano, que lança, em julho, o livro “Soledad no Recife” pela editora Boitempo. Ele é autor do romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici.


Urariano Mota: Arriba, Sol!

Viomundo — Por que Soledad? Na sua coluna, você diz que só agora teve condições de mergulhar nas entranhas daquele momento. Por quê?

Urariano Mota – Há temas que nos perseguem, embora nem sempre a gente perceba. No meu primeiro livro, o romance “Os corações futuristas”, houve Cíntia, uma brava socialista. Já no destino trágico de Cíntia havia um destino de Soledad. A “diferença” é que Cíntia se apoiava em outra pessoa, em outra militante. Enquanto Soledad, pelo menos quero crer e me empenhei muito por isso, Soledad é a pessoa. É a própria pessoa, pelo menos desejo ter realizado isso.

Por que só agora, 36 anos depois? De um ponto de vista pessoal, estou mais apto e cônscio de minhas fronteiras. De um ponto de vista mais geral, digamos, objetivo, o crime contra Soledad é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. A traição que ela sofreu expressa, com vigor, a traição contra jovens do sentimento mais generoso, que é o sentimento de humanidade, do mundo.

Viomundo — Era tua amiga? Como ela era?

Urariano Mota — Eu sou fundamentalmente um escritor.  Isso quer dizer, expresso minha experiência vivida, sempre. Ou em fatos biográficos, testemunhados e sofridos, ou em fatos imaginados, recompostos, ressurgidos, que são também, para a literatura, para o artista, fatos testemunhados e sofridos. Soledad não era, ela é minha amiga. Mas não trocamos palavras em sua curta vida. Este livro diz a ela, fala as palavras que não podemos trocar, no Recife da ditadura Médici.

Mais de uma pessoa, para não dizer quase todas as pessoas, pensam que Soledad foi minha namorada, que eu a conheci pessoalmente. Isso vem da narração e da forma apaixonada do relato.  Essa impressão surge, veio e vem do livro. Mais de um leitor já recebeu essa impressão. Isso se deve à mistura, em um só corpo, de pessoas e fatos absolutamente reais, documentados, sabidos, ao sentimento que tenho daqueles dias. O documento vivido pela segunda vez. Então, é claro, o elemento “ficcional” virou factual.  Como ela era, como ela é, o livro dirá.

Viomundo –   É citado o massacre da chácara São Bento. Que lembrança isso traz?

Urariano Mota - As notícias, publicadas em todo o Brasil em janeiro de 1973, dos seis “terroristas” mortos no aparelho da São Bento, são absolutamente falsas. As “notícias” de terroristas mortos, naquele tempo, eram reproduzidas com a mesma redação e teor em toda a imprensa brasileira. Vinham da agência de segurança nacional. Jamais houve o “massacre da chácara São Bento”. Houve a execução fria, planejada, de seis bravos militantes. A chácara foi o teatrinho criado para a execução de seis bravos.

Soledad Barret Viedma e Pauline Reichstul – há testemunho público disso – foram assaltadas em uma butique no Recife, de surpresa espancadas sob pistolas e sequestradas. Em uma mangueira, por trás da butique, a proprietária notou depois sangue, vômito e urina. Isso de modo público, à vista de todos. Jarbas Pereira Marques, outro militante, que aparece entre os terroristas da chácara, foi retirado da livraria onde trabalhava, à luz do dia.

Digo isso no livro, e repito aqui: em uma ditadura, até as datas dos jornais são falsas.

Viomundo — Soledad foi traída pelo cabo Anselmo, que a delatou ao delegado Fleury. Você conheceu o cabo Anselmo? O que  sente por ele?

Urariano Mota - Eu estudo o seu caráter há muitos e muitos anos. Ele é objeto de minha permanente observação e pesquisa. No entanto, jamais vi na rua o cabo Anselmo. Eu o conheço por seus cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele perseguiu, traiu e matou.

Ninguém podia imaginar que ele fosse uma infiltração. Anselmo pertence à família dos agentes duplos, dos instrumentos de política que se chamam espiões. Isso quer dizer: ele é um mundo de mentiras. Ele era e é um sistema em que mentiras armam mentiras, que constroem mentiras, sempre. Isso quer dizer, enfim, que tudo quanto esse instrumento dizia e disser, falar, deve ser posto sob absoluta desconfiança, porque ele mente por sistema, por hábito, por defesa, por ataque e natureza. Não se pode acreditar em uma só das suas palavras. Quando ele diz eu amo, eu respeito, o bom senso deve traduzir de imediato, ele odeia e despreza.

Sou de opinião que não importa o seu último nome. Porque ele não tem outro nome nem outra face. Jonas, Daniel, José, com barba, sem barba, magro, gordo, com novos olhos, novas orelhas, novo nariz, nova boca, não importa. Ele será sempre, para onde for, cabo Anselmo, aquele que gerou a morte da sua companheira, que trazia um filho no ventre.

Viomundo — Soledad morreu jovem, linda. Se ela vivesse no Brasil de hoje, o que estaria fazendo Soledad, em quem votaria, o que a preocuparia?

Urariano Mota – É a pergunta mais difícil. Mas sei, ou posso ter a esperança de que ela estaria no movimento socialista, com um apoio crítico ao governo Lula. Continuaria linda, pelo fogo que tomava o seu corpo e sua vida, que não se apaga, não arrefece, apenas fica mais maturado. Como um vinho decantado que embriaga melhor.

Para ela, viva neste 2009, digo o que escrevi no livro:

Soledad não é só a mulher bonita, de um ponto de vista físico, cuja fotografia revela apenas uma estação do seu ser. Uma estação imóvel do seu peito dinâmico, e de tal modo que dará ao fotógrafo o que se diz de um mau desenhista, “isto não se parece com ela, não saiu parecido”. E se pedirá então ao fotógrafo o absurdo, a saber, que a máquina, a mecânica, reproduza um ser, a textura, cor e delicadeza da orquídea, da pessoa mesma. Como se fosse possível da flor um close que a isolasse do ar que ela respira, do campo em torno, do cheiro que exala, em resumo, como se fosse possível reproduzir o complexo, a conspiração de sentidos que se dirigem para um único fim, a pessoa, o ser vivo, poderoso em nos despertar amor, afeição, paixão, tara e paz, que buscamos como a uma miragem. Ainda assim, se sabemos que na flor há um ser inalcançado na fotografia, se comparamos, se transpomos mal, imagine-se então Soledad no lugar dessa flor do campo. Imaginamos mal e mau, já veem. Flor não se rebela nem canta. Flor nos desperta canção e rebeldia, quando machucada. Mas a pessoa de Soledad, ainda que lembre essa flor – e é irrecusável não lhe ver a pele como o tecido de uma pétala -, e assim a lembraremos pelo vento forte e traiçoeiro que se prepara para a muchucar e destruir, ainda assim, como a superar tal associação, ainda que nos persiga como só uma ideia é capaz de perseguir, hoje, neste dia do seu aniversário, ela está mais bela que antes. ¡ Arriba, Sol!

Como aperitivo, encante-se com mais estes dois momentos de”Soledad no Recife”

Primeira vez em que Urariano fala de Soledad no livro

Eu a vi primeiro numa noite de sexta-feira de carnaval. Fossem outras circunstâncias, diria que a visão de Soledad, naquela sexta-feira de 1972, dava na gente a vontade de cantar. Mas eu a vi, como se fosse a primeira vez, quando saíamos do Coliseu, o cinema de arte daqueles tempos no Recife. Vi-a, olhei-a e voltei a olhá-la por impulso, porque a sua pessoa assim exigia, mas logo depois tornei a mim mesmo, tonto que eu estava ainda com as imagens do filme. Num lago que já não estava tranquilo, perturbado a sua visão me deixou. Assim como muitos anos depois, quando saí de uma exposição de gravuras de Goya, quando saí daqueles desenhos, daquele homem metade tronco de árvore, metade gente, eu me encontrava com dificuldade de voltar ao cotidiano, ao mundo normal, “alienado”, como dizíamos então. Saíamos do cinema eu e Ivan, ao fim do mal digerido O anjo exterminador. Imagens estranhas e invasoras assaltavam a gente.

A vontade que dava de cantar retornou adiante, naquela mesma noite. No Bar de Aroeira, no pátio de São Pedro, naquela sexta-feira gorda. Como são pequenas as cidades para os que têm convicções semelhantes! Estávamos eu e Ivan sentados em bancos rústicos de madeira, na segunda batida de limão, quando irromperam Júlio, ela e um terceiro, que eu não conhecia. Ela veio, Júlio veio, o terceiro veio, mas foi como se ela se distanciasse à frente – diria mesmo, como se existisse só ela, e de tal modo que eu baixei os olhos. “Como é bela”, eu me disse, quando na verdade eu traduzi para beleza o que era graça, graça e terna feminilidade.


A morte de Soledad


Chegamos agora mais perto de Soledad Barret Viedma. Excluo-me, na medida do possível, da qualidade daquele que a amou em silêncio.

Há quem considere que a morte de Soledad, nas circunstâncias que conhecemos mais tarde, deu-se em razão de sua ternura. Isso é mais que um namoro, um interlúdio, para dizer que ela esculpiu a própria sorte, porque, diabo, era terna e verdadeira. Com a evidência de um escândalo. Prenhe de ternura até as raias do suicídio. Esse elogio torto, digno da reencarnação e pele de um Anselmo 2, é como um açúcar no sal de sua execução. Um doce, um mel, a lhe correr sobre os lábios entre coices, descargas elétricas e afogamentos. Conviria melhor ser dito que ela, por suas qualidades raras de pessoa, estava condenada.


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