Agradeço à Prof. Dra. Elga Pérez Laborde o convite para falar neste Congresso Internacional de Humanidades cujo tema maior é “Palavra e cultura na América Latina: heranças e desafios”, com o foco específico na “Dimensão espacial e temporal da linguagem e da cultura nos contextos latino-americanos”.
Eu tento aqui ligar os dois temas mostrando que a dimensão espacial de uma cultura latino-americana passa pela dimensão temporal da palavra usada nesse contexto. Não faço aqui uma construção teórica, apenas uma narrativa jornalística, contrapondo a resistência da palavra à truculência da força. Ou, a força da palavra contra a palavra da força.
Enfoco neste texto episódios ocorridos na América do Sul, particularmente na região do Cone Sul. Nos episódios narrados, identifico a deturpação, a omissão, a censura ou o completo silenciamento da palavra diante da força bruta sob a ditadura em cinco países da região – Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – durante a segunda metade do século 20.
Inicio minha narrativa não com uma palavra, mas com um palavrão:
– Me cago en Dios!
Ninguém conhece o nome do jovem estudante que pronunciou a blasfêmia. Nem mesmo quem ouviu a frase, o jornalista uruguaio Rodolfo Porley Corbo. Ambos estavam lado a lado, mas encapuzados, pendurados como gado numa cela do Comando Geral do Exército, em Montevidéu, num dia qualquer de 1977. O que impressionou o jornalista de 31 anos não foi o desabafo angustiado do jovem, mas a indignada reação do militar que comandava a tortura:
– Respete las ideas ajenas, mocito!
Seria cômico, se não fosse trágico. A cena é talvez a lembrança mais marcante e surreal dos três anos e meio que Porley passou encarcerado em quatro estabelecimentos militares do país, somando 325 dias de prisão incomunicável, 149 deles vendado, paralisado pela dor, destroçado pela violência. Ao desembarcar na Suécia como asilado, em 1979, o jornalista foi recebido como “um embaixador perigoso dos vivos e dos mortos no cárcere”. Sua primeira entrevista em Estocolmo escancarou o perigo:
– En mi país gobierna el poder de la locura ciega. Son los brutos, asesinos y verdugos quienes gobiernan. Las cárceles de mi país están llenas. Lo que vemos ahora es la deformación de la propia vida.
Frase final
Porley deixara para trás o Uruguai, o segundo menor país da América do Sul, com menos de três milhões de habitantes e cerca de 40 mil detidos em prisões e quartéis. Um uruguaio de cada 100 era vítima de torturas. No Brasil de hoje seria uma multidão de quase 2 milhões de torturados, o suficiente para lotar 25 estádios como o Maracanã. Aquele era o Uruguai que devia respeitar as ideias alheias, na cínica frase do torturador de Porley e seu companheiro de cela.
Não era um drama particular do país que tinha o melhor padrão de prosperidade econômica da região, o maior nível de educação do continente. Era uma tragédia coletiva, transnacional, das ditaduras que em apenas uma ou duas décadas rebaixaram, em absurda ordem unida, os cinco países do Cone Sul na segunda metade do Século 20. Eram as nações de maior expressão política e força econômica da região, onde hoje vivem mais de 250 milhões de pessoas, duas vezes e meia a população dos outros oito países e três territórios da América do Sul. Ondas sucessivas de governos militares afogaram a democracia e a razão durante quase um século de arbítrio.
Foram exatos 92 anos somados de ditaduras que eram de um e eram de todos: Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Chile (1973-90), Uruguai (1973-85) e Argentina (1976-83).
Na quimera do combate ao pensamento, as ditaduras caçaram o suspeito de sempre: a palavra – expressão das vozes, território da cultura, pátria da liberdade. A palavra é sempre perigosa, porque alarga as fronteiras, os idiomas, as ideias, hasta las ideas ajenas. A palavra ensina, mostra, revela, e por isso precisa ser escondida, aprisionada, silenciada. Em nome de sua santa cruzada contra a subversão, militares do Cone Sul conseguiram contrariar a lógica, inverter o pensamento, confundir a razão, subverter a palavra. A força da palavra, de repente, ficou encarcerada pela palavra da força. A força das ditaduras no Chile e no Uruguai conseguiu deformar pelo absurdo o significado de dois ícones da civilização: dignidade e liberdade.
Dignidad era o nome de uma colônia agrícola, 300 km ao sul de Santiago do Chile, fundada nos anos 1960 por um ex-enfermeiro da Luftwaffe nazista, acusado de abuso sexual contra crianças. Ali, o Exército de Pinochet fabricava gás sarin e a repressão treinava agentes em técnicas de interrogatório e tortura.
Libertad era o maior presídio masculino do Uruguai, 50 km a oeste de Montevidéu, um depósito de gente onde mofavam 600 presos políticos espremidos num prédio lúgubre de cinco andares povoados por gritos, medo, sofrimento, dor.
A ditadura daqueles tempos conseguiu a proeza de transformar Dignidad em sinônimo de tortura no Chile, conseguiu a façanha de tornar Libertad um endereço de prisão no Uruguai. Naqueles tempos, naqueles lugares, Dignidad e Libertad machucavam a carne, sangravam a alma. A ditadura, só a ditadura, tem a força para deturpar a palavra, para inverter o sentido moral das coisas, para converter o nexo das ideias no seu avesso.
Era “o avesso do avesso do avesso do avesso”, como cantava Caetano Veloso no verso final de Sampa, a mais completa tradução de São Paulo, onde “alguma coisa acontece no coração/... só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”. Quatro quilômetros ao sul da mais popular esquina paulistana estava o cruzamento das ruas Tomás Carvalhal e Tutóia, endereço do prédio mais sinistro da maior cidade do continente, a sede do DOI-CODI do II Exército, o mais notório centro de torturas do Brasil. O verso de Caetano capta o melhor retrato daquele antro: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto /Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto”. Ali sucumbiam os homens e as palavras diante do “horror, o horror!”, como na frase final de Kurz, a personagem de Joseph Conrad em Coração das Trevas.
Perguntas e respostas
O DOI-CODI da rua Tutóia foi criado e administrado por um major de Exército oculto pelo codinome de “major Tibiriçá”, o nome mais temido da repressão militar brasileira.
Nos 40 meses em que comandou aquele lugar, símbolo mais sangrento dos anos de chumbo do Governo Médici, o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra amargou 502 denúncias de tortura, uma a cada 60 horas, e lamentou 40 mortes de presos políticos, uma por mês. Apesar disso, hoje aposentado e refém de seu passado, o coronel da reserva Ustra continua livre, solto, impune.
Na Argentina, um companheiro de farda de Ustra teve menor sorte. O general Jorge Rafael Videla, que começou em 1976 a ditadura de sete anos que eliminou pela força a palavra e a vida de 30 mil argentinos, foi destituído de sua patente militar e condenado em 2010 à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade, o que inclui a responsabilidade direta pelo fim de 31 pessoas – nove mortes menos do que as ocorridas na repartição de trabalho do major brasileiro.
A força mata pessoas e palavras, mas também inventa um novo léxico para tentar abarcar a dura realidade que ela produz. No Chile de Pinochet, emergiu uma nova palavra no dicionário da repressão, já coalhado de presos e mortos. Surgiu a figura intermediária e angustiante do “desaparecido” – que quase sempre era uma coisa e outra, preso ou morto, sequência e consequência um do outro, e que tinha sobre eles a vantagem de isentar o Estado de explicações e justificativas.
Um “desaparecido” era uma dúvida, quem sabe um equívoco, talvez uma fatalidade, sempre um mistério que não incriminava ninguém e absolvia a todos – com exceção dos familiares da vítima, condenados ao desespero, subjugados pelo luto iminente, esmagados pela dor incessante. Um “desaparecido” só levantava suspeitas e mais perguntas, sem a garantia de certezas ou possíveis respostas. O “desaparecido” disseminava o medo. Do medo brotava o terror – e novas palavras.
O dicionário do terror fabricava uma palavra ainda mais assustadora, mais aflita: os no-nombrados, os N.N., cadáveres sem nome, sem cara, sem história, exumados por um regime de força sem coragem, sem caráter, sem futuro, sem passado. As pessoas com nomes desapareciam separadamente e, de repente, emergiam do solo covas coletivas apinhadas de mortos sem nome. No auge de seu poder, em 1979, Videla fez uma contorcida exegese do que seria esta estranha criação do regime dos generais:
– O que é um desaparecido? Como tal, o desaparecido é uma incógnita... Enquanto desaparecido, não pode ter nenhum tratamento especial: é uma incógnita, é um desaparecido, não tem identidade. Não está nem morto, nem vivo. Está desaparecido...
Duas décadas depois, já no ostracismo, o general Videla foi menos hermético com as palavras que tentavam disfarçar a força bruta, estúpida, assassina. Confessou o general:
– No, no se podia fusilar. Não haviaoutra maneira. É o que ensinavam os manuais da repressão na Argélia, no Vietnã. Estávamos todos de acordo. Dar a conhecer onde estão os restos mortais? Mas, o que é que poderíamos apontar? O mar, o rio da Prata, o Riachuelo? Pensamos, em dado momento, informar sobre a lista [de mortos]. Mas, aí, se os damos por mortos, em seguida virão as perguntas que não se podem responder. Quem matou? Onde? Como?
O general mostrou que esse é o drama maior das ditaduras: agem e fazem coisas que geram perguntas para as quais não existem respostas, que não permitem explicações, que não resistem a dúvidas, que não admitem palavras.
Neologismo afrontoso
Em junho de 1977, em plena ditadura brasileira, o MDB, o partido da oposição, teve espaço para um programa institucional em rede nacional de TV. Alencar Furtado, o líder da bancada na Câmara dos Deputados, desenterrou os no-nombrados dosBrasil num dos mais pungentes discursos da história brasileira, mostrando com palavras as perguntas sem respostas que a força do regime produzia. Com coragem, emoção e lirismo, disse o líder:
– Hoje, menos que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, punições injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em prantos; filhos órfãos de pais vivos – quem sabe?; mortos? – talvez. Órfãos do talvez e do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez.
A ditadura respondeu horas depois às perguntas do líder do MDB, cassando o mandato do deputado Alencar Furtado – apenas um dos 4.862 políticos cassados no Brasil por usar palavras que a ditadura não queria ouvir ou por fazer perguntas que a ditadura não podia responder.
A ditadura brasileira fez isso, e fez muito mais. Investigou 500 mil cidadãos, deteve 200 mil por suspeita de subversão, prendeu 50 mil só nos primeiros cinco meses do golpe de março de 1964. Acusou 11 mil civis nos tribunais militares, condenou quase a metade deles. Torturou 10 mil pessoas só no DOI-CODI da rua Tutóia, exilou outro tanto, aposentou funcionários públicos insubmissos, expulsou professores inconvenientes, baniu estudantes indomáveis, reformou militares dissidentes, colocou interventores em 1.200 sindicatos insubordinados, expurgou 49 juízes dos tribunais e afastou três ministros rebeldes da Suprema Corte brasileira. Fechou o Parlamento por três vezes, colocou sete Assembleias estaduais em recesso, matou 400 opositores na tortura e legou ao país o fantasma de 144 pessoas que ainda hoje são uma incógnita, seres que não têm identidade, não estão mortos, nem vivos, estão apenas “desaparecidos”.
A incapacidade para responder às perguntas leva ao cinismo, um atalho rápido para a mentira, o embuste, a fraude – que deturpam as palavras para camuflar a força que as silencia.
Um documento revelado pelo jornal O Globo em março passado mostra que os atuais comandantes militares do Brasil da democracia continuam se enrolando com as palavras necessárias para definir o Brasil da ditadura. Protestando contra o projeto do próprio governo para a Comissão Nacional da Verdade, destinada a investigar violações aos direitos humanos, os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica escreveram: “Passaram-se quase 30 anos do fim do governo chamado militar...”.
Fizeram, desfizeram, cometeram tudo aquilo e os oficiais-generais brasileiros, 30 anos depois do fim do arbítrio, ainda simulam uma dúvida existencial sobre o que seria um governo chamado militar.
Como o amor de Oscar Wilde que “não ousa dizer o seu nome”, os cínicos herdeiros do regime de força imposto ao país por longos 21 anos não ousam dizer o nome que o define por sua correta acepção: ditadura. Um Brasil que não tem a coragem de cumprir esse rito de passagem não tem condições, nem palavras, para fazer a travessia da história, deixando a força para trás até alcançar a margem segura da verdade.
Um grave sintoma desse cinismo aflorou em 2009, justamente em quem tem o compromisso de zelar pelas palavras e o dever de combater a mentira: a imprensa. Num inusitado editorial, o jornal Folha de S.Paulo abrandou o vernáculo e torturou a verdade carimbando a ditadura brasileira com um afrontoso neologismo: “ditabranda”.
O editorialista se esqueceu de dizer que, no auge da repressão, a empresa emprestava as caminhonetes que distribuíam o jornal para gentilmente transportar presos políticos até a repartição nada branda do DOI-CODI do major Ustra.
Corações monitorados
A palavra perde força e se perde pela força do poder, não pela roupa ou pelo uniforme de quem a pronuncia. Um militar pode subverter a verdade com o mau uso da palavra, mas também pode resgatá-la pela estrita obediência aos fatos e pela firme imposição sobre a mentira.
Foi o que aconteceu na histórica noite de 25 de abril de 1995, quando um general de uniforme, porte altivo, voz serena e cabelos brancos aos 61 anos, foi à TV para uma rara entrevista ao vivo.
Ao final, antes das despedidas, tirou um papel do bolso e acrescentou uma inesperada declaração, que eletrizou o país.
Estas foram as palavras do general:
– Nosso país viveu a década de 70, uma década assinalada pela violência, pelo messianismo e pela ideologia. Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira.
E continuou o general:
– Sem eufemismos, digo claramente: delinque quem vulnera a Constituição nacional. Delinque quem emite ordens imorais. Delinque quem cumpre ordens imorais. Delinque quem, para cumprir um fim que crê justo, emprega meios injustos e imorais. A compreensão desses aspectos essenciais faz a vida republicana de um Estado.
E reforçou o general:
– Se não pudermos elaborar a dor e cicatrizar as feridas, não teremos futuro. Não devemos mais negar o horror vivido, e assim poder pensar em nossa vida como sociedade que avança, superando a pena e o sofrimento. Em nome da luta contra a subversão, o Exército derrubou o governo constitucional e se instalou no poder em forma ilegítima, num golpe de Estado. Venho pedir perdão por isso e assumir a responsabilidade política pelo desatino cometido no passado. No poder, o Exército cometeu ainda outros delitos. O Exército prendeu, sequestrou, torturou e assassinou – tal qual o fizeram os delinquentes subversivos – e muitos de seus membros viraram delinquentes como eles.
O espantoso ato de contrição do general só não emocionou o Brasil porque, infelizmente, não aconteceu aqui. E o general, evidentemente, não era brasileiro.
O autor dessas palavras era o comandante supremo do Exército argentino, Martín António Balza, entrevistado pelo jornalista Bernardo Neustadt no mais importante programa de TV da Argentina, o Tiempo Nuevo. A fala firme, límpida do general Balza impressionou sobretudo por acontecer justamente no país que mais sangrou no turbulento Cone Sul da década de 1970, com seus 30 mil desaparecidos.
O pronunciamento de fé democrática do comandante argentino numa região marcada pelos pronunciamientos militaresgolpistas prova que a boa, justa palavra não é uma prerrogativa de civis ou militares, mas um apanágio dos homens de bem, de bom caráter.
Ao longo do tempo, a palavra no Cone Sul foi acossada pela hipocrisia – para proteger a fronteira do arbítrio – e foi resgatada pela coragem – para ampliar os limites da resistência. Este imemorial confronto entre a força da palavra e a palavra da força assinala os avanços e os retrocessos da democracia em nosso continente.
O político brasileiro Carlos Lacerda (1914-1977), um visceral conspirador contra a democracia, não economizou palavras e intenções para externar seu ímpeto golpista nos idos de 1950, quando ficou claro que Getúlio Vargas, o ditador deposto do Estado Novo, tentaria voltar ao poder pelo voto popular. Lacerda deu sua palavra:
– O sr. Getúlio Vargas (...) não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, deveremos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.
O general argentino Ibérico Saint Jean foi ainda mais cortante, empregando apenas 25 palavras para montar o mais rombudo obelisco à barbárie e à boçalidade política. Em maio de 1976, dois meses após o golpe que o nomeou interventor no governo da província de Buenos Aires, o general trovejou:
– Primeiro, mataremos todos os subversivos. Depois, seus colaboradores. Mais tarde, os seus simpatizantes. Então, mataremos os que permanecerem indiferentes. E, finalmente, vamos matar os indecisos.
Aqui, longe de ser cínico, o militar usa a palavra dura, crua e nua não para esconder, mas para escancarar a doutrina de um serial killer fardado que não respeita las ideas ajenas. Para quem ainda tinha dúvidas, Saint Jean aproveitou uma conferência em 2008 sobre “Democracia e Ética”, no Rotary Club de Mar del Plata, para reafirmar sua despótica visão do mundo com uma desconcertante, transtornada aritmética. Este foi o cálculo do general:
– O voto serve para impor a ditadura da maioria. Assim, quando os tiranos são muitos pode ser muito pior do que quando é apenas um.
Ainda em 2008, aos 86 anos, Saint Jean foi preso para responder a processo por prisões ilegais, sequestros, tortura e desaparecimento forçado. Seu crime mais famoso foi o sequestro em 1977 do jornalista Jacobo Timerman, fundador do jornal mais crítico e influente do país, o La Opinión. Fichado nos arquivos de inteligência do Exército argentino como “un judío muy peligroso”,Timerman ficou detido durante dois anos. Visitado na prisão por congressistas norte-americanos, o jornalista descreveu alguns momentos que padeceu na unidade policial de La Plata, sob jurisdição de Saint Jean. Contou o jornalista:
– Fui torturado e atado a uma cama, todo encharcado de água, para receber choques elétricos pelo corpo. É impossível descrever o efeito devastador da picana elétrica. Eles usavam um modulador para reduzir o choque de 220 volts, para evitar que os prisioneiros morressem instantaneamente. Dois médicos participavam para monitorar o coração das vítimas – lembrou Timerman.
Última publicação
Opinião tem a força de uma palavra maldita, que sempre amedronta os regimes que se sustentam na palavra da força e da violência.
La Opinión incomodava na Argentina, o jornal Opinião perturbava no Brasil.
O simples anúncio do lançamento do semanário, em novembro de 1972, assustou a ditadura em Brasília.
O editor do jornal, Fernando Gasparian, foi preventivamente convocado à sede da Polícia Federal, no Rio. Medindo as palavras para camuflar o constrangimento, o major Braga falou:
– Eu quero avisar ao Sr. que aqui no Brasil não existe censura prévia, a não ser por problemas morais. O Sr. pode publicar o que quiser.
Em seguida, o major tirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que Gasparian e toda a imprensa não podiam publicar – mesmo que quisessem.
O editor pediu uma cópia para conhecer a lista, mas ela lhe foi negada.
– A lista é secreta – explicou o major, com os termos exatos para definir o absurdo da situação. Era o arbítrio negando a censura e, ao mesmo tempo, recusando a lista que provava sua existência. Era a palavra da força que temia a força da palavra.
O major Braga era o bruto que faltava na manada de rinocerontes de Ionesco.
E assim, secretamente, o regime asfixiou o Opinão a partir do oitavo número. Primeiro, mandando recados. Depois, com o censor dentro da redação. Por fim, exigindo a remessa do jornal impresso para Brasília, antes de liberar a venda nas bancas. Em quatro anos e meio, Opinião sofreu ameaças, prisões, apreensões de edições inteiras, processos judiciais, o lançamento de uma bomba na redação e um decreto presidencial, baseado num ato de força – o AI-5 –, ratificando a censura prévia que o jornal tinha derrubado, como ilegal, no Tribunal Federal de Recursos. O semanário publicou 5.796 páginas, mas teve que produzir quase o dobro – 10.548 páginas – para suprir a falta do material vetado pela censura que não existia, pela lista que ninguém conhecia.
Gasparian cansou da censura e, em 8 de abril de 1977, mandou para as bancas uma edição diferente da que enviara a Brasília para revisão da polícia. Corajosamente, abaixo do título de Opinião, o jornal trazia um carimbo desafiante, retumbante, triunfante: “Livre”.
A primeira edição de Opinião sem censura foi apreendida. O jornal nunca mais voltou às bancas. A palavra final do regime de força matou o jornal que ousou ser, pela primeira vez, o Opinião liberado, libertado pela força das palavras.
O Uruguai, o algodão incrustado entre os cristais cortantes de Brasil e Argentina, pensou na palavra antes de se pensar como país. O decreto que garantia a liberdade de escrever nasceu em outubro de 1811, 14 anos antes do Uruguai se declarar independente pela insurreição libertadora dos Treinta y três orientales, 19 anos antes de sua primeira Constituição. Até que o advogado Gabriel Terra, eleito presidente em 1931, dois anos depois jogou no chão esta bela história.
Em março de 1933, com o apoio do Corpo de Bombeiros (!) e da Polícia, dirigida por seu cunhado, Terra instaurou a sua ditadura.
Seu primeiro ato de força foi um decreto que reconhecia a força das palavras. Dizia:
Decretase la censura previa de los órganos de publicidad que hayan atribuido o atribuyan propósitos dictatoriales al Presidente de la República.
Quarenta anos depois, quase as mesmas palavras ressuscitaram para escancarar a mesma força bruta:
“Proíbe-se a divulgação pela imprensa oral, escrita ou televisionada, de todo tipo de informação, comentário ou gravação (...) atribuindo propósitos ditatoriais ao Poder Executivo”.
Era o Art. 3º do decreto 467 de 27 de junho de 1973, o dia do golpe civil-militar na terra de Gabriel Terra, que já não era a nação livre sonhada pelos 33 Orientales e pelo libertador Artigas.
Até as palavras da meteorologia assustavam a ditadura. O locutor da rádio já não podia falar sobre o inverno mais rigoroso no país. A censura proibia a palavra correta sobre a previsão do tempo – “mucho frio”–,ignorando a inclemência da estação e reafirmando a impenitência dos quartéis. Os militares mandavam dizer assim:
– Hace frio, pero no mucho. Hay países que están peores…
Em apenas cinco meses de 1973, entre julho e novembro, o Uruguai fechou 23 jornais, 273 edições foram confiscadas nas bancas. Foi pior no ano seguinte, 1974: 96 redações destruídas, 8 por mês, duas por semana, uma a cada 3 dias. Na véspera do réveillon de 1975, foi invadida a última publicação, a revista de um padre jesuíta, Andrés Assandri, intitulada Perspectivas de Diálogo.
Nada estranho empastelar uma revista com palavras tão provocativas.
Afinal, perspectivas, não havia: diálogo, muito menos.
Etiqueta macabra
A falta de comunicação estava expresso no encontro improvável de 1977 entre um dos maiores rinocerontes da repressão no Uruguai e um dos maiores virtuoses da música na Argentina.
Miguel Ángel nem existia quando seus avós chegaram do Oriente Médio. O funcionário da Imigração de Buenos Aires perguntou seu nome várias vezes, mas o avô não entendia bem o espanhol. Limitou-se a apontar para o céu, sem dizer uma palavra. O funcionário, irritado, mandou anotar no documento:
– Póngale Estrella a estos turcos de mierda!
Sem querer, ele tinha acertado: Najmah, em árabe, significa estrela. Anos depois, em 1940, nascia em Tucumán o neto predestinado pela harmonia do cosmos: Miguel Ángel Estrella, encantado pela música de Chopin, começou aos 12 anos a estudar o piano que o transformaria numa estrela da música clássica no mundo.
Artista consagrado, alternava seus espetáculos entre a plateia elegante das maiores salas de concerto do mundo e os shows gratuitos para o público humilde das favelas e dos povoados do interior que não tinham música em suas vidas miseráveis.
Ele estava em Montevidéu, em dezembro de 1977, quando caiu nas mãos da maior estrela da repressão uruguaia, o major José Nino Gavazzo.
Preso sob a falsa acusação de ser um guerrilheiro montonero, Estrella foi levado para uma casa clandestina de interrogatório, próxima ao aeroporto de Carrasco, onde foi torturado com choques elétricos, suspenso do solo por uma roldana.
Durante seis dias seguidos, teve suas mãos delicadas atadas às costas, enquanto seus algozes simulavam cortar seus dedos com uma serra elétrica. A tortura fez com que o pianista perdesse a sensibilidade nos braços e nas mãos por 11 meses. O major Gavazzo, racista e prepotente, explicou o motivo de tanta violência:
– Você não é um guerrilheiro. É algo pior: com um piano e um sorriso você põe a negrada no bolso e faz os negros acreditarem que podem escutar Beethoven. Formaram você para tocar para nós e agora você prefere tocar para a negrada!
Estrella ouvia a ameaça do major:
– Não te matamos porque não podemos, mas vamos te destruir totalmente. Nunca mais serás o pai de teus filhos. Nunca mais serás amante de uma mulher. Nunca mais tocarás piano. Temos métodos muitos sofisticados. Se daqui a 18 anos, que é o tempo que vamos te prender aqui, ainda continuares com esse sorriso, vamos te matar. Porque és uma pessoa que tem fé e essa fé nós vamos arrancar.
Estrella e sua arte só sobreviveram pela força de um movimento internacional que exigiu a libertação do pianista, em 1980.
Aos 71 anos, Miguel Ángel ainda é uma estrela que brilha, fulgurante, com a mesma fé que a tortura não conseguiu arrancar, com o mesmo sorriso que a força bruta não pôde matar.
Aos 72 anos, o major Gavazzo não pode nem mesmo sorrir. É um dos primeiros militares processados por crimes de direitos humanos na ditadura e está preso em Montevidéu, condenado desde 2010 a 25 anos de prisão pela morte de 28 uruguaios, sequestrados em Buenos Aires um ano antes da prisão de Estrella.
Os profissionais da força têm sérios problemas com as palavras e uma patológica obsessão com as mãos.
Isso ficou claro um dia depois do bombardeio do Palácio de La Moneda, onde sucumbiram o presidente Salvador Allende e a dem0cracia. Em 12 de setembro de 1973, no ginásio fechado do Estádio Chile, foram detidos 600 estudantes e professores da Universidad Técnica del Estado (UTE). Entre eles estava Victor Jara, que aos 40 anos usava as mãos e a voz para dar força e lógica às palavras.
No seu testamento musical, Manifiesto, no disco póstumo Tiempos que Cambian (de 1974), Jara apregoava:
“Yo no canto por cantar/ ni por tener buena voz,/ Canto porque la guitarra/ tiene sentido y razón.”
Jara vivia das palavras, como professor de jornalismo, diretor de teatro, poeta, cantor, compositor, músico e ativista político. Tinha todos os pecados, portanto, para ser odiado pelas palavras de força que iriam caçar e silenciar a força das palavras. No Chile de Pinochet, Victor Jara tinha o mesmo e único prognóstico de Federico García Lorca na Espanha de Franco: a morte
O oficial que reconhece Jara na multidão de presos o ataca com pontapés, chutando as costas, a cabeça, o corpo todo. Jogado num corredor, Jara resiste com a arma que lhe resta, que sempre será sua: a palavra. Pede lápis e papel e, superando o sangue e a dor, escreve os últimos versos de sua vida breve:
Canto que mal que sales/ Cuando tengo que cantar espanto/ Espanto como el que vivo/ Espanto como el que muero.
Jara ainda tem tempo de repassar o poema a um companheiro, antes que dois soldados o arrastem para nova seção de golpes, ainda mais brutais. Um oficial da Força Aérea pergunta ao preso estirado no chão se ele fuma. Jara nega, o oficial insiste: “Pois agora vais fumar!”. E lhe joga um cigarro aceso. Tremendo, Jara estende o braço para pegar a bagana. O militar ergue o pé e esmaga a mão do artista com o seu coturno. A palavra amaldiçoada explica a violência:
– Ahora, vamos a ver si aún tocas la guitarra, comunista de mierda! – grita o oficial.
No quinto dia após o golpe, Jara foi trucidado com 44 disparos e seu corpo jogado num matagal próximo ao Cemitério Metropolitano, às margens de uma rodovia.
O mais conhecido cantor do país foi levado para o depósito de cadáveres e ganhou a etiqueta macabra daqueles tempos sinistros: N.N, mais um no-nombrado. Jara só perdeu o anonimato quando teve seus restos reconhecidos pela viúva.
Palavra que fala
O Brasil também era varrido por aquela estranha sanha assassina contra as mãos. No início dos anos 1960, o jornalista Antônio Maria (1921-1964) era um artífice das palavras, o maior cronista do Rio de Janeiro. Escrevia no jornal getulista Última Hora, adversário direto da Tribuna da Imprensa, do eterno conspirador Carlos Lacerda.
Irritados com os constantes ataques de Maria ao seu chefe, capangas de Lacerda atacaram o jornalista e lhe quebraram os dedos das duas mãos. No dia seguinte, para surpresa de todos, Maria voltou com outro artigo impiedoso, que não falava do espancamento.
Na última linha, porém, o cronista escreveu:
– Que tolos! Eles pensam que os jornalistas escrevem com as mãos...
Os tolos de todos os lugares, de todas as eras, imaginam que os homens e mulheres produzem com as mãos, ou só com as mãos, as maravilhas do pensamento e os monumentos das artes que marcam o processo civilizatório.
Censurando a imprensa, reprimindo as artes, silenciando os dissidentes, disseminando o medo e o terror de Estado, tentaram esmagar o homem e seus direitos. A partir de meados dos anos 1980, as ditaduras foram expostas nas suas entranhas, desabando uma a uma num efeito dominó que resgatou a esperança e a dignidade no extremo sul do continente.
A versão vazia e triunfalista da história oficial no Cone Sul, que deturpava a palavra pela força, foi confrontada pela palavra liberta e liberada de quem antes se calara pela força da violência, do medo.
Surgia o outro lado da história, a história do outro lado.
Na palavra do jornalista, do historiador, do político, do escritor, do poeta, do músico, um novo continente de ideias e de verdade aflorou na América, livre dos simbolismos, das metáforas, das alegorias, dos subtextos, das codificações poéticas de letras e músicas que recuperaram sua capacidade de contar livremente o desafio da vida.
As novas narrativas da América Latina das décadas de 60 a 80 do século passado surgem, agora, com o testemunho que preenche lacunas e desfaz lendas do poder.
Esta é a alentadora herança que fica: qualquer que seja o desafio imposto pela força, pelo silêncio, pelo arbítrio, sempre restará a palavra que redime, a palavra que honra, a palavra que fala.
Cedo ou tarde, lembramos e contamos.
Palavra por palavra.
***
[Luiz Cláudio Cunha é jornalista]
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