Desaparecidos, mas não olvidados
De todos os livros que já li sobre esse período de horror, este é o que mais me emocionou. Lembro-me de ter visto o rosto devastado de K. na Cúria Metropolitana, quando ficou até amigo de dom Paulo Evaristo. Minha emoção ao ler K. é primeiro de compaixão (solidariedade com a dor), depois de enorme raiva e indignação... pela indiferença de tantos.
Maria Victoria de Mesquita Benevides
(*) Texto de apresentação do livro "K.", de Bernardo Kucinski, 184 pp., Editora Expressão Popular, São Paulo, 2011.
Ditadura militar, 1974. Um jovem casal, ela química, professora na Universidade de São Paulo, ele físico trabalhando em uma empresa, desaparece sem deixar o menor sinal. Pânico na família e nas amizades, buscas incansáveis, qualquer fiapo de informação reacendendo esperanças, sofrimento indizível com a agonia da incerteza.
Mais tarde a realidade se impôs, trágica e definitiva: eram militantes da resistência e tinham sido sequestrados, torturados e assassinados. Talvez na “Casa da Morte”, em Petrópolis? Nada foi confirmado e eles continuam na lista dos “desaparecidos”.
Desaparecidos, mas não olvidados. Este livro não veio para registrar fatos do terrorismo do Estado, mas, sim, para nos colocar dentro da dor e da memória. O senhor K. é o protagonista, dilacerado em seu amor paterno e os sentimentos de culpa: como não percebera o que acontecia com a filha, ele que também fora um resistente judeu na Polônia natal?
Na leitura, convivemos com as providências desesperadas da família, apelando no país e no exterior, e aqui tendo que lidar com agentes da repressão, com informantes, com extorsões, com a mentira, o escárnio, a humilhação, a covardia, a crueldade.
O tema é abordado equilibradamente, com concisão, firmeza e emoção, a delicadeza dos sentimentos ao lado da denúncia e da relação com a continuidade ainda hoje. O autor conseguiu manter, de toda essa viagem ao coração das dores e da revolta, a qualidade literária de um jornalista-escritor.
De todos os livros que já li sobre esse período de horror, este é o que mais me emocionou. Lembro-me de ter visto o rosto devastado de K. na Cúria Metropolitana, quando ficou até amigo de dom Paulo Evaristo. Minha emoção ao ler K. é primeiro de compaixão (solidariedade com a dor), depois de enorme raiva e indignação... pela indiferença de tantos; pela hipocrisia de alguns rabinos que negaram apoio à “impura” (!); pelo “perdão” aos torturadores e demais responsáveis, garantido pelo STF; pela canalhice dos que, até hoje, martirizam a família com “informações”; pelo papel repugnante da USP, que demitiu a professora por “abandono do emprego”; pelos políticos que têm ojeriza do tema porque não dá voto – pode até tirar; pelos “ex-combatentes” que falam não querer revanchismo... a lista é longa.
Este livro vai marcar um espaço importantíssimo em nossa bibliografia sobre o que muitos ignoram ou escondem.
E a luta continua. Há que se desvelar a verdade para que não se repita, há que se exigir justiça para que a dignidade das vítimas seja respeitada e a criminalidade das “autoridades” esclarecida e punida.
(*) Maria Victoria de Mesquita Benevides é socióloga e professora da USP.
Ditadura militar, 1974. Um jovem casal, ela química, professora na Universidade de São Paulo, ele físico trabalhando em uma empresa, desaparece sem deixar o menor sinal. Pânico na família e nas amizades, buscas incansáveis, qualquer fiapo de informação reacendendo esperanças, sofrimento indizível com a agonia da incerteza.
Mais tarde a realidade se impôs, trágica e definitiva: eram militantes da resistência e tinham sido sequestrados, torturados e assassinados. Talvez na “Casa da Morte”, em Petrópolis? Nada foi confirmado e eles continuam na lista dos “desaparecidos”.
Desaparecidos, mas não olvidados. Este livro não veio para registrar fatos do terrorismo do Estado, mas, sim, para nos colocar dentro da dor e da memória. O senhor K. é o protagonista, dilacerado em seu amor paterno e os sentimentos de culpa: como não percebera o que acontecia com a filha, ele que também fora um resistente judeu na Polônia natal?
Na leitura, convivemos com as providências desesperadas da família, apelando no país e no exterior, e aqui tendo que lidar com agentes da repressão, com informantes, com extorsões, com a mentira, o escárnio, a humilhação, a covardia, a crueldade.
O tema é abordado equilibradamente, com concisão, firmeza e emoção, a delicadeza dos sentimentos ao lado da denúncia e da relação com a continuidade ainda hoje. O autor conseguiu manter, de toda essa viagem ao coração das dores e da revolta, a qualidade literária de um jornalista-escritor.
De todos os livros que já li sobre esse período de horror, este é o que mais me emocionou. Lembro-me de ter visto o rosto devastado de K. na Cúria Metropolitana, quando ficou até amigo de dom Paulo Evaristo. Minha emoção ao ler K. é primeiro de compaixão (solidariedade com a dor), depois de enorme raiva e indignação... pela indiferença de tantos; pela hipocrisia de alguns rabinos que negaram apoio à “impura” (!); pelo “perdão” aos torturadores e demais responsáveis, garantido pelo STF; pela canalhice dos que, até hoje, martirizam a família com “informações”; pelo papel repugnante da USP, que demitiu a professora por “abandono do emprego”; pelos políticos que têm ojeriza do tema porque não dá voto – pode até tirar; pelos “ex-combatentes” que falam não querer revanchismo... a lista é longa.
Este livro vai marcar um espaço importantíssimo em nossa bibliografia sobre o que muitos ignoram ou escondem.
E a luta continua. Há que se desvelar a verdade para que não se repita, há que se exigir justiça para que a dignidade das vítimas seja respeitada e a criminalidade das “autoridades” esclarecida e punida.
(*) Maria Victoria de Mesquita Benevides é socióloga e professora da USP.
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