“K” e a dor sem remédio de uma ausência sem fim
‘K’, o romance-testemunho de Bernardo Kucinski, é uma narrativa de vertigem, escrita de forma pungente e avassaladora. Mais que um grito de dor e revolta, mais que um uivo inconformado, é um lento, sossegado, estonteante lamento. O livro fala de uma falta, fala da carência dessa vida ceifada, seqüestrada, sumida. E é essa falta que se estende ao leitor, ao passado, à memória. Um lamento perene, porque não há nem haverá final para esse vazio.
Eric Nepomuceno
A produção literária brasileira – tanto a de ficção como a testemunhal – sobre os anos de breu da ditadura militar é, na verdade, escassa. Se comparada à produção de países vizinhos, como a Argentina, o Chile e o Uruguai, torna-se mais escassa ainda, principalmente se for levado em conta que, apesar da barbárie ter sido maior, nesses três países os regimes militares tiveram duração menor. É como se os escritores brasileiros não encontrem matéria prima nesse passado tão recente e escuro.
Há livros – poucos – que aliam alta qualidade do texto à profunda e comovedora honestidade do relato. Penso, especialmente, em ‘Memórias do Esquecimento’, de Flávio Tavares, ou ‘Uma tempestade como a sua memória’ (ambos publicados pela editora Record), em que Martha Vianna traça um delicado e certeiro perfil biográfico de Maria do Carmo Britto, a primeira mulher a ocupar um posto de mando numa organização da resistência armada (a mesma, aliás, à qual pertenceu Dilma Rousseff).
Há outros em que a indiscutível qualidade do texto mascara o pouco respeito pelo que efetivamente ocorreu, e o afã de protagonismo de seus autores, que se arvoram de façanhas que jamais realizaram, distorce e enfraquece o relato. Há também aqueles nos quais a fidelidade aos fatos não é correspondida pela qualidade do texto, e que por isso mesmo se tornaram desinteressantes. Enfim, há de tudo – mas em poucos livros.
É nesse cenário que surge ‘K’, o romance-testemunho de Bernardo Kucinski, lançado pela Expressão Popular. E se logo de saída a própria estrutura proposta para a narrativa surpreende e impacta, é aos poucos, conforme desfia o longo e dolorido rosário da memória, que ‘K’ alça vôo e ganha força e espaço.
Na abertura, Kucinski esclarece que ‘tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu’. A partir daí, o autor dá voz à memória, e conta o que conta seguindo os passos erráticos das lembranças, que nunca surgem – como, aliás, na vida real – em ordem rigorosamente cronológica, e muito menos com precisão absoluta.
A narrativa lança mão de vários recursos literários, a começar por concentrar num personagem determinado – o ‘K’ do título – vários outros, inclusive o próprio autor. A busca desesperada primeiro, furiosa depois, serena mais tarde, porém perene, absolutamente perene, de um pai pela filha seqüestrada e desaparecida pelo terrorismo de Estado que imperou no Brasil durante muito mais tempo, e de maneira muito mais profunda do que se acredita (e se quer fazer acreditar) nos conduz, nos torna acompanhantes e testemunhos dos andares e desandares de ‘K’. E é essa angustiada – e inútil – saga que surge dos lampejos de memória que aparecem desordenados, na tentativa de conseguir enfim entender o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu. E, ao mesmo tempo, abre portas e brechas para que saltem à luz personagens daquele tempo, deste nosso tempo, com seu inventário de dores e amputações, com suas cicatrizes na alma.
Ana Rosa Kucinski e seu marido, Wilson Silva, militantes da ALN, foram seqüestrados e desaparecidos numa noite de abril de 1974. Sumiram no ar sem deixar rastros. Ao narrar como o pai de Ana Rosa começa a buscar a filha, Bernardo Kucinski constrói um antes e um depois dessa história trágica. O antes é o antes, é a presença de sua irmã Ana Rosa. E o depois? Bem, o depois é a perversa, a dramática comprovação de que é justamente a presença dessa ausência que se tornou e se tornará permanente, irremediavelmente permanente. Ana Rosa jamais apareceu. A ausência de Ana Rosa jamais deixa de estar presente.
‘K’ é uma narrativa de vertigem, escrita de forma pungente e avassaladora. Mais que um grito de dor e revolta, mais que um uivo inconformado, é um lento, sossegado, estonteante lamento. O livro fala de uma falta, fala da carência dessa vida ceifada, seqüestrada, sumida. E é essa falta que se estende ao leitor, ao passado, à memória. Um lamento perene, porque não há nem haverá final para esse vazio.
Há livros – poucos – que aliam alta qualidade do texto à profunda e comovedora honestidade do relato. Penso, especialmente, em ‘Memórias do Esquecimento’, de Flávio Tavares, ou ‘Uma tempestade como a sua memória’ (ambos publicados pela editora Record), em que Martha Vianna traça um delicado e certeiro perfil biográfico de Maria do Carmo Britto, a primeira mulher a ocupar um posto de mando numa organização da resistência armada (a mesma, aliás, à qual pertenceu Dilma Rousseff).
Há outros em que a indiscutível qualidade do texto mascara o pouco respeito pelo que efetivamente ocorreu, e o afã de protagonismo de seus autores, que se arvoram de façanhas que jamais realizaram, distorce e enfraquece o relato. Há também aqueles nos quais a fidelidade aos fatos não é correspondida pela qualidade do texto, e que por isso mesmo se tornaram desinteressantes. Enfim, há de tudo – mas em poucos livros.
É nesse cenário que surge ‘K’, o romance-testemunho de Bernardo Kucinski, lançado pela Expressão Popular. E se logo de saída a própria estrutura proposta para a narrativa surpreende e impacta, é aos poucos, conforme desfia o longo e dolorido rosário da memória, que ‘K’ alça vôo e ganha força e espaço.
Na abertura, Kucinski esclarece que ‘tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu’. A partir daí, o autor dá voz à memória, e conta o que conta seguindo os passos erráticos das lembranças, que nunca surgem – como, aliás, na vida real – em ordem rigorosamente cronológica, e muito menos com precisão absoluta.
A narrativa lança mão de vários recursos literários, a começar por concentrar num personagem determinado – o ‘K’ do título – vários outros, inclusive o próprio autor. A busca desesperada primeiro, furiosa depois, serena mais tarde, porém perene, absolutamente perene, de um pai pela filha seqüestrada e desaparecida pelo terrorismo de Estado que imperou no Brasil durante muito mais tempo, e de maneira muito mais profunda do que se acredita (e se quer fazer acreditar) nos conduz, nos torna acompanhantes e testemunhos dos andares e desandares de ‘K’. E é essa angustiada – e inútil – saga que surge dos lampejos de memória que aparecem desordenados, na tentativa de conseguir enfim entender o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu. E, ao mesmo tempo, abre portas e brechas para que saltem à luz personagens daquele tempo, deste nosso tempo, com seu inventário de dores e amputações, com suas cicatrizes na alma.
Ana Rosa Kucinski e seu marido, Wilson Silva, militantes da ALN, foram seqüestrados e desaparecidos numa noite de abril de 1974. Sumiram no ar sem deixar rastros. Ao narrar como o pai de Ana Rosa começa a buscar a filha, Bernardo Kucinski constrói um antes e um depois dessa história trágica. O antes é o antes, é a presença de sua irmã Ana Rosa. E o depois? Bem, o depois é a perversa, a dramática comprovação de que é justamente a presença dessa ausência que se tornou e se tornará permanente, irremediavelmente permanente. Ana Rosa jamais apareceu. A ausência de Ana Rosa jamais deixa de estar presente.
‘K’ é uma narrativa de vertigem, escrita de forma pungente e avassaladora. Mais que um grito de dor e revolta, mais que um uivo inconformado, é um lento, sossegado, estonteante lamento. O livro fala de uma falta, fala da carência dessa vida ceifada, seqüestrada, sumida. E é essa falta que se estende ao leitor, ao passado, à memória. Um lamento perene, porque não há nem haverá final para esse vazio.
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