No verão de 2007-2008, matérias publicadas na Folha de S. Paulo alardearam o "aumento progressivo" da doença, assustaram a população e sobrecarregaram ainda mais o sistema de saúde
Para pesquisadora, impacto da cobertura jornalística do sistema público de saúde exige "discussão crítica" (Foto: Valter Campanato/Arquivo Agência Brasil) |
São Paulo – O aumento progressivo do número de casos de febre amarela de grandes proporções, projetado nas matérias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo no verão entre 2007 e 2008 felizmente não foi além das estratégias discursivas da cobertura jornalística deste que se intitula "um jornal a serviço do Brasil". Mas foi propagada a tese de uma iminente epidemia da doença, de grandes proporções, na qual a vacinação representava o limite entre a vida e a morte, sem que os riscos do uso indiscriminado do imunizante antiamarílico fossem divulgados.
Essas são as principais constatações da pesquisa "Epidemia midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008", realizada na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
A jornalista Claudia Malinverni, funcionária concursada da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e autora da pesquisa para seu mestrado, analisou 118 matérias veiculadas pelo jornal entre 21 de dezembro de 2007 e 29 de fevereiro de 2008, além de 40 boletins emitidos pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde no mesmo período.
Um dos resultados da epidemia midiática foi a explosão da demanda pela vacina, que obrigou o Ministério da Saúde a distribuir, entre dezembro de 2007 e 22 de fevereiro de 2008, 13,6 milhões de doses da vacina antiamarílica, 10 milhões de doses acima da distribuição média de rotina para o período. Em menos de dois meses, mais de 7,6 milhões de doses foram aplicadas na população, 6,8 milhões só em janeiro de 2008, ápice do agendamento da imprensa. Em razão do aumento exponencial do consumo de vacina, o Brasil, um dos três fabricantes mundiais do antiamarílico, suspendeu a exportação do imunobiológico e pediu à Organização Mundial da Saúde (OMS) mais 4 milhões de doses do estoque de emergência global.
Na entrevista a seguir, Claudia dá mais detalhes sobre os resultados de seu estudo.
Você chegou a acompanhar a cobertura do tema pela Folha de S. Paulo na época da suposta epidemia?
Sim. A Coordenadoria de Controle de Doenças (CCD), onde trabalhava, é um órgão estadual responsável pelas políticas e ações de controle de todas as doenças e agravos que se manifestam no território paulista, aí incluída a febre amarela. Por isso, no âmbito da minha área de atuação, acompanhei de perto os impactos da cobertura jornalística sobre o sistema estadual de imunização.
Que avaliação você fazia da abordagem?
Em razão da minha formação eu sabia que, do ponto de vista dos conceitos epidemiológicos, a abordagem jornalística como um todo estava errada. E aqui não se trata de ilação; estou falando de um discurso, o da epidemiologia, que negava a prática discursiva midiática.
Pode explicar melhor?
Vejam o seguinte: a febre amarela apresenta dois ciclos distintos, um silvestre e outro urbano, que diferem, respectivamente, quanto ao vetor (mosquitos responsáveis pela transmissão do vírus), hospedeiro (macacos e humanos), área de ocorrência dos casos (florestas e zonas urbanas) e, sobretudo, potencial de disseminação da doença. É importante ressaltar que desde a década de 1940 o Brasil não registra casos de febre amarela urbana. Os três últimos ocorreram em 1942, na cidade de Sena Madureira, no Acre. Portanto, o evento amarílico do verão de 2007-2008, objeto da minha pesquisa, era o silvestre. Ocorre que o noticiário estava ignorando toda uma prática discursiva teórica, que tem cerca de meio século e foi insistentemente reafirmada e reproduzida pelas autoridades de saúde pública (Ministério e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde), que indicava que o evento amarílico em curso estava dentro da normalidade. Dito de outro modo, os casos de febre amarela registrados então estavam absolutamente de acordo com o comportamento natural do ciclo silvestre, segundo o discurso epidemiológico.
Quem escrevia as matérias?
Quem escrevia as matérias?
Este é um dado importante da pesquisa. Analisei especificamente a Edição SP do jornal Folha de S.Paulo, que circula na Capital e Grande São Paulo (à exceção da região do ABCD) e é produzida, segundo a própria Folha, especificamente para o leitor desta região (a propósito, indene para febre amarela silvestre, ou seja, livre da circulação do vírus amarílico). As grandes reportagens - todas publicadas na editoria Cotidiano, de perfil essencialmente generalista, na qual são abordados os temas de interesse geral, como educação, saúde, polícia, trânsito) eram assinadas por jornalistas de diferentes equipes. Além da reportagem local, o que indica que a matéria é produzida pela equipe de São Paulo, muitas reportagens são assinadas por jornalistas de outras praças, sob a chancela da Agência Folha (de Brasília, Belo Horizonte, Interior paulista, por exemplo).
O jornal deu mesmo muita atenção à epidemia...
Essas autorias indicam uma mobilização intensa da redação em torno do tema. Por outro lado, a febre amarela ocupou um espaço significativo nas editorias Opinião e Brasil, dedicadas a temas que a Folha elege como de “interesse nacional”, notadamente política, economia. Nessas editorias, o tema foi seguidamente abordado por colunistas e articulistas, todos não especialistas em saúde pública. No trabalho, categorizei essas matérias como “textos de opinião”, interpretativos e de natureza não jornalística, na perspectiva das teorias da comunicação, como agenda-setting e framing, respectivamente “agendamento da notícia” e “enquadramento do texto”. De modo geral, como não trazem informação nova e são, basicamente, a manifestação de um juízo de valor, textos desta natureza dão à cobertura jornalística alto grau de subjetividade. Os textos de opinião responderam por cerca de 37% do noticiário veiculado. Destaco que, ao longo de toda cobertura, o jornal publicou apenas um texto de opinião de especialista (um médico), a propósito contrário à tese de epidemia amarílica e de vacinação em massa, que era então o principal enquadramento da febre amarela no jornal.
O que diziam os informes das autoridades de saúde na época?
O que diziam os informes das autoridades de saúde na época?
Localizei e analisei 40 documentos emitidos pela Secretaria de Vigilância em Saúde, órgão do Ministério da Saúde responsável pelo controle de doenças e agravos, no âmbito federal. Todos, sem exceção, afirmavam e reafirmavam que o episódio estava de acordo com o comportamento natural do ciclo silvestre. Aqui é importante explicar que a forma silvestre da febre amarela apresenta epizootias (manifestação de uma doença contagiosa entre animais não humanos, geralmente com óbitos entre esta população) regulares, que se manifestam a cada cinco ou sete anos, segundo estudos epidemiológicos. No Brasil, desde o início dos anos 2000, o ciclo silvestre é monitorado por um sistema público de vigilância que tem como evento sentinela o adoecimento e/ou morte de macacos (epizootia). Logo, óbitos de macacos nas regiões endêmicas ou de transição para febre amarela são um forte indicativo de que o vírus amarílico está circulando, em plena atividade. A última grande epizootia brasileira havia ocorrido em 2001, quando o número de casos e óbito foi expressivamente maior do que o do ciclo de 2007-2008. Logo, o evento ora analisado estava dentro desta perspectiva cíclica da doença.
Além disso, invariavelmente, os documentos descreveram as principais medidas do sistema brasileiro de vigilância da febre amarela, entre elas a vacinação da população que vive ou viaja para áreas de risco, atualização do número de casos suspeito, óbitos. Essas informações – contidas no que categorizei, para efeito de análise, como “discurso oficial” – ora foram ignoradas, ora relativizadas.
Como o jornal ignorava ou relativizava as informações das autoridades de saúde?
No caso da cobertura da Folha, a estratégia discursiva da relativização do “discurso oficial” fica evidente na edição do dia 14/01/2008. Nela, a febre amarela foi manchete (principal chamada da capa) e reportagem de destaque da editoria Cotidiano. Reproduzida ipsis litteris nesses dois espaços editoriais, a matéria é apresentada sob o título “Ministro vai à TV negar epidemia de febre amarela”, seguido do seguinte texto de abertura: “No dia em que o número de notificações de casos suspeitos de febre amarela subiu de 15 para 24, o ministro José Gomes Temporão (Saúde) foi à TV fazer um pronunciamento em cadeia nacional para dizer que ‘não existe risco de epidemia’”. Nessa leitura, o aumento nas notificações de casos suspeitos relativiza (para baixo) o valor absoluto da informação dada pela autoridade de saúde pública, qual seja, de que o país não corria risco de sofrer uma epidemia de febre amarela. Esta relativização pode ter produzido no leitor leigo a ideia de que o ministro, logo, o próprio governo federal, recusava-se a aceitar um acontecimento que, discursivamente, parecia consumado: a febre amarela configurava-se como um evento indiscutivelmente epidêmico.
Quais seriam os objetivos dessa abordagem escolhida pelo jornal?
Minha pesquisa limitou-se à análise das práticas discursivas, portanto, à busca dos repertórios interpretativos, veiculados no texto, que produziram o sentido epidêmico do acontecimento amarílico. Não entrevistei os profissionais do jornal, portanto, do ponto de vista da pesquisa, não tenho condições de realizar a análise solicitada. O que posso assegurar, ancorada em marcos teóricos consistentes do campo da comunicação, é que a transformação de um acontecimento cotidiano em notícia depende basicamente das condições de produção dadas pela empresa jornalística (o chamado newsmaking) e da sua política editorial, seja qual for a sua filiação ideológica. A notícia, ao contrário do que reza a lenda profissional, não é a mera reprodução de uma realidade dada, de um fenômeno objetivo que repousa no cotidiano à espera de jornalistas intrépidos, em busca da verdade factual, que a resgatará do cotidiano. Isso é mito, retórica que romantiza a profissão. A notícia é uma imagem da realidade social, produzida pelos veículos de comunicação em consonância com o seu newsmaking e com a sua política editorial. E é uma imagem poderosa, que forma opiniões e cria novas crenças; que cria doenças... cria epidemias.
E o aspecto da vacinação? Você acha que havia interesse dos fabricantes alinhavado com a cobertura?
Aqui vale a mesma premissa. Minha pesquisa não permite emitir qualquer análise nesse sentido. Contudo, é preciso esclarecer que a vacina antiamarílica passa ao largo de interesses de mercado, uma vez que sua produção está a cargo do BioManguinhos, laboratório público, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Embora não faça esse tipo de discussão no meu trabalho, particularmente acredito que a ênfase na vacina deve-se ao fato de ela conferir imunidade prolongada contra o vírus (a vacina tem validade de dez anos). Além disso, é bom lembrar que, de modo geral, os imunobiológicos são um consenso nacional, exercendo grande poder de sedução junto à população brasileira e à mídia, que há décadas adere incondicionalmente às campanhas de vacinação. Em resumo, o Brasil gosta de vacina!
Quais os efeitos colaterais desse tipo de vacina?
A vacina contra a febre amarela é, indiscutivelmente, segura e efetiva no controle da doença. Há raros registros de complicações graves pós-vacinais. Segundo a literatura, entre 2% a 5% dos vacinados apresentam algum tipo de reação. Mas, como qualquer produto farmacêutico, como a vacina, pode apresentar efeitos colaterais ou eventos adversos. Algumas vezes, essas reações podem ser bastante graves. No caso da vacina antiamarílica, a mais perigosa reação, embora rara, é a doença viscerotrópica (DV), que pode causar choque, derrame pleural e abdominal e falência múltipla dos órgãos. Felizmente, a DV tem sido bastante rara no Brasil. Em nove anos (1999-2007), o Sistema de Vigilância de Eventos Adversos Pós-Vacinação (EAPV), vinculado ao Programa Nacional de Imunização (PNI/MS), registrou oito casos, com sete óbitos. Contudo, em 2008, foram confirmados oito casos de reação adversa grave, dos quais seis foram a óbito. Duas dessas mortes foram confirmadas como doença viscerotrópica e uma, até o encerramento da minha pesquisa, ainda estava em investigação. É um número bastante expressivo e, provavelmente, está relacionado ao número muito alto de doses aplicadas em um curtíssimo período. Entre o final de dezembro de 2007, quando as primeiras notícias sobre a doença começaram a ser veiculadas com destaque por diversos veículos de imprensa de todo o país, e 22 de fevereiro de 2008, foram distribuídas aos Estados e Distrito Federal 13.630.700 doses da vacina antiamarílica – a série histórica do programa indica uma distribuição de rotina entre 15-16 milhões ao longo de um ano, ou aproximadamente 1,35 milhão de doses ao mês. Em pouco menos de dois meses, mais de 7,6 milhões de vacinas foram aplicadas, 6,8 milhões só em janeiro de 2008. A grande maioria das pessoas não tinha indicação para a vacina antiamarílica.
Vale lembrar que, em razão do aumento exponencial do consumo de vacina, o Brasil, que é um dos três fabricantes mundiais do antiamarílico, suspendeu a exportação do imunobiológico. Além disso, em fevereiro de 2008, o Ministério da Saúde pediu à Organização Mundial da Saúde (OMS) mais 4 milhões de doses do estoque de emergência global. É curioso notar que este pedido foi um paradoxo, porque visava a atender a uma eventual necessidade de vacinação em massa, que o próprio ministério descartava insistentemente.
E como se comportaram as autoridade médicas na época em relação ao caso?
Do ponto de vista institucional, e acredito também legal, a única intervenção possível foi feita: a divulgação sistemática de informações oficiais. Ocorre que até o registro do primeiro óbito suspeito de febre amarela vacinal, em 31 de agosto de 2008, em nenhum momento o fluxo discursivo da autoridade de saúde conseguiu contrapor-se ao fluxo discursivo midiático, ao menos no jornal que analisei. Essa incapacidade fica muito, muito clara na análise do conteúdo dos documentos divulgados pelo Ministério da Saúde. Quase nada, incluindo uma longa descrição das medidas de controle da doença, foi divulgado. E quando isso aconteceu, como já disse, o “discurso oficial” foi relativizado.
Para se ter uma ideia deste descuramento (omissão) do “discurso oficial”, em 15 de janeiro, o jornal publicou uma entrevista, estilo pingue-pongue, com uma especialista em saúde pública da Universidade de Harvard, que fazia uma série de recomendações às autoridades brasileiras para o enfrentamento da febre amarela. Ressalte-se que essas “recomendações” já haviam sido publicizadas em dois documentos oficiais, divulgados pela SVS/MS em 9 de janeiro, portanto, seis dias antes da referida entrevista. Mas no texto publicado pelo jornal não há qualquer menção ao documento do Ministério.
O que podemos aprender com o episódio?
Acho importante que possamos refletir sobre as repercussões que os sentidos midiatizados têm sobre os processos saúde/enfermidade vivenciados pelas pessoas no cotidiano. No caso da febre amarela, especificamente, os impactos da cobertura jornalística sobre o sistema público de saúde demandam uma discussão crítica sobre o papel do jornalismo generalista no campo da saúde, particularmente da saúde pública. Todas as práticas discursivas implicam produção de sentidos no cotidiano, ou seja, a construção da realidade, inclusive a do jornalismo. A bandeira da liberdade de expressão, reconhecida e legitimada nas sociedades ocidentais como instrumento fundamental à cidadania, não pode servir de salvo conduto ao fazer jornalístico. Ao contrário, como produtor poderoso de significação, o discurso jornalístico também deve ter em perspectiva as complexidades dos processos do adoecimento humano e os limites do conhecimento no tratamento das doenças.
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