Quando, no penúltimo domingo de janeiro, por volta das 6h da manhã,
um efetivo de 2 mil homens da Polícia Militar iniciou a operação de
reintegração de posse na ocupação do Pinheirinho, em São José dos
Campos, o maranhense David Furtado, de 30 anos, demorou para perceber o
que estava acontecendo. Em meio ao tumulto, deixou o local às pressas,
com a família, tentando se livrar dos tiros disparados em direção aos
moradores.
Não imaginava que a expulsão ocorreria naquela manhã. Nem que corria em direção ao perigo.
Nos dias anteriores, diante das muitas liminares sobre a desocupação,
ele e a família esperavam pelo pior: todos dormiam vestindo roupas
normais, em vez dos pijamas.
O sistema de alerta também estava montado. Caso a PM chegasse, os
moradores do soltariam fogos de artifício para avisar a vizinhança. A
ordem era resistir.
Entre sábado e domingo, porém, o clima era de alívio. Na véspera da
expulsão, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), o deputado federal Ivan
Valente (PSOL-SP) e vereadores do Partido dos Trabalhadores estiveram no
local. Com os moradores, eles comemoravam um acordo feito entre as
lideranças e a massa falida da Selecta, dona do terreno, que
supostamente garantiria a suspensão da ordem de reintegração por 15
dias. Para o domingo à tarde, estava previsto até mesmo um show com o
rapper Lurdez da Luz.
Até que a ordem da Justiça Estadual colocou todo mundo para correr – e
colocou também ao chão todo o sistema de alerta montado nos dias
anteriores.
Pego desprevenido, David Furtado correu com a mulher e os filho em
direção a uma quadra poliesportiva onde a prefeitura havia montado
estandes para orientar os moradores, a algumas dezenas de metros da
ocupação. Ali, justamente onde deveria estar protegido, foi alvejado
pelas costas – e o tiro não era de borracha.
O disparo, conforme a Prefeitura de São José dos Campos (SP)
reconheceu, partiu do revólver de um homem da Guarda Civil
Metropolitana, que assistia à atividade e acertou a coluna do rapaz.
“Quando nós saímos de dentro do acampamento, você não entendia o que
estava acontecendo, aquele barulho, aquele tumulto. A gente achava que
indo naquela direção ia se livrar das balas, mas corremos exatamente na
direção do perigo”, relatou Laura Furtado, mulher de David.
Na terça-feira 31, David aceitou conceder sua primeira entrevista
desde que foi atingido. Ele nos recebeu no quarto de 7 m² que divide com
um homem de cerca de setenta anos no Hospital Municipal de São José dos
Campos.
Morador do Pinheirinho desde o início da ocupação, David era
funcionário de uma empresa que presta serviços à prefeitura de São José
dos Campos na construção e manutenção de calçadas.
Dias depois de passar por uma cirurgia para retirar a bala, sua fala é
lenta e arrastada, e seu futuro é incerto. Ainda não há previsão de
alta e ele teme não poder voltar ao trabalho, já que não consegue
realizar qualquer movimento com a perna esquerda.
Em conversa com a reportagem de CartaCapital, ele conta que sua maior preocupação agora é ter condições para sustentar sua mulher e filho. Confira:
CartaCapital - Como souberam que a operação de reintegração de posse já havia começado?
David Furtado - Acordamos com fogos de artifício lá no
Pinheirinho. A população estava preparada, a gente estava esperando, mas
não naquele domingo, naquela covardia. No domingo, as famílias dormem
até mais tarde, foi uma estratégia deles. E a gente conseguiu sair [de
casa], eu, minha esposa e meu filho. Ficamos sabendo através do povo que
mora ali mesmo no Pinheirinho.
CC – Que fogos de artifícios eram aqueles?
DF - A gente tinha planejado [a queima de fogos] na comunidade mesmo para avisar. Era para correr para frente da fronteira, para esperar eles.
CC – Deu tempo de pegar alguma coisa? Você conseguiu recuperar seus pertences?
DF – Nada. Só o bebê. Trocamos de roupa e saímos.
CC – Como foi o momento em que você levou o tiro?
DF – Eu e minha esposa estávamos subindo lá de volta
para a casa do meu irmão. Não deixaram a gente entrar para fazer a
inscrição [na quadra poliesportiva onde a prefeitura montou os
estandes]. E aí eles já tinham dado vários tiros, mas, como eles já
tinham abaixado as armas, mas estava em punho ainda, nós dois resolvemos
voltar para ir na casa do meu irmão. A gente estava ciente de que não
podia mais entrar. Aí foi a hora que ele [o policial da Guarda Civil]
estava com a arma na mão atrás do poste. Ele e mais alguns começaram a
atirar. Foi na hora que eu mandei a minha esposa correr, e quando eu me
vi eu estava no chão.
CC – Você conseguiu ver o rosto de quem disparou?
DF – De onde eu estava para ele… Eu sei mais ou menos a
fisionomia, como ele se comporta. Mas o rosto não dá para discriminar
bem. Mas assim, a fisionomia, do jeito que ele estava muito nervoso,
carregando aquela arma direto…
CC – Ele atirou uma vez só?
DF - Ele atirou uma vez e o meu colega foi me socorrer,
graças a Deus, e ele atirou outra vez. Não sei se foi ele, porque eu
estava no chão, não deu para ver porque eu estava nervoso, perdendo
muito sangue.
CC – Você já sabe se vai ficar com o movimento das pernas prejudicado?
DF - Bom, o doutor disse que a bala ficou entre um
nervo e o osso. Ele disse que, aos poucos, eu vou caminhar, mas estou
com muita dificuldade na perna esquerda. Vou fazer exames para saber
qual nervo foi atingido e fazer uma série de fisioterapia para ver se
realmente eu vou voltar a andar normal.
CC – O que você pensa em fazer quando sair daqui?
DF - Não sei. Não tem nem previsão de alta ainda….
CC – E o seu trabalho?
DF – Por enquanto… também não sei, não tem nem como
pensar, né? Não tem como voltar ainda, não tenho condições de nada,
precisa de fisioterapia. Eu sinto ainda o impacto da bala nas costas,
não tenho condições de trabalhar, de fazer nada.
CC – Em que você pensa quando fica aqui, sozinho, na maior parte do tempo?
DF – Na minha esposa e no meu filho. Em mais nada.
CC – Você acredita que alguém será responsabilizado pelo tiro que você levou?
DF - Sim, porque a justiça de Deus não falha.
CC – Qual é seu maior medo a partir de agora?
DF – Meu maior medo é não voltar a andar normal, não
conseguir trabalhar, não conseguir sustentar nem meu filho, nem minha
esposa. Espero que não aconteça nada pior, nem comigo, nem com outras
pessoas.
CC – Como você avalia a atuação da polícia naquele domingo?
DF – A tropa de choque… Eu achei muito errado. Saíram
jogando bomba pra todo mundo, pra tudo quanto é lado. Muito errado
mesmo, um monte de gente despreparada. E da guarda municipal pior ainda.
Despreparados. Eles são de uma faixa etária que a maioria toma remédio
de pressão, não sabe controlar uma arma. Então pra que colocar esse
pessoal para trabalhar sem qualificação nenhuma? Isso é uma pergunta
para o Cury [Eduardo Cury, PSDB, prefeito de São José dos Campos]
responder. Todos os que estavam ali, se você passar nas casas por ali,
todos vão dizer a mesma maneira.
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