Tal como Sócrates, Galileu e Nelson Mandela, o tribunal era muito inferior a quem condenava
*Texto extraído do blog Outras Palavras | Tradução: Antonio Martins
O condenado é espanhol – andaluz, para maior precisão. Percebe-se por
sua fala, seu modo de pronunciar certas consoantes ou quando fala de
“libertáz” ou de “dignitáz”. Gosta de futebol (foi goleiro na juventude e
às vezes reincide) e também dos touros. É uma referência da justiça
mundial, um exemplo de consciência em muitos países – por exemplo,
nestas pampas.
A reivindicação dos direitos humanos na Argentina teria chegado ao
ponto atual sem a intervenção fidalga de Baltasar Garzón? Este cronista
supõe que não, mas trata-se de hipótese. O indiscutível é que Garzón é
parte da busca de justiça diante do terrorismo de Estado; que merece um
capítulo, ou algo mais. Que é um modelo para as militâncias mais nobres
da nossa história. Em termos jurídicos, um criador notável de
jurisprudência, que influenciou muita gente por aqui.
"Verguenza": Condenação de Garzón causou revolta entre os parentes de vítimas do franquismo [Efe] |
* * *
A década de 1990 não foi obscura apenas pela entrega do patrimônio
nacional e pelo desmantelamento do estado de bem-estar social. Também
assistiu a um retrocesso fenomenal na odisseia em favor da memória,
verdade e justiça. A aparição do magistrado que reabriu as causas
encerradas aqui por estultice, obediência devida e indultos, dinamizou
os movimentos por direitos humanos. Deu nova voz às vítimas,
acostumou-as a um peregrinar por tribunais de várias paragens do globo.
Foi o pioneiro, o mais decidido. Que cada um decida se foi o melhor.
Está entre eles.
Sucessivos governos argentinos deram-lhe as costas com argumentos
banais e covardes. O governo Menen, por razões evidentes. A Aliança que
veio em seguida o copiou, ainda que eleito tivesse prometido purificar o
país e lutar contra a corrupção. O senhor juiz pediu extradições,
foram-lhe negadas. A Argentina já não era apenas garantia da impunidade
dos genocidas. Tornara-se a base da qual estes não podiam sair, para não
ser levados ao banco dos réus.
O ditador Augusto Pinochet foi menos prevenido
* * *
Assim que soube que Pinochet “parava” em solo britânico, Garzón correu
ao escritório e começou a escrever um pedido de extradição. Corria
contra o relógio, devia agir em sigilo. Convocou apenas um funcionário
de sua vara, começou a ditar-lhe, febril, o texto da ordem. Precisava
ser veloz e rigoroso. Não lhe interessava a repercussão fácil, mas a
prisão do criminoso. Num momento, já de madrugada, seu colaborador,
impressionado, perguntou: “Senhor, este homem de que estamos tratando é
aquele que imagino”? O cronista escutou esta história do mesmíssimo juiz
que a reportou, rindo, porque tem sentido de humor e ama o que faz – ou
fazia.
O Parlamento britânico admitiu a extradição. A sessão dos lordes foi
transmitida pela TV argentina. O cronista, que a assistiu, emocionou-se,
escorregou para suas memórias locais. As vítimas, os companheiros que
já não estão, as Mães e Avós. Nesta tarde, na reunião de fechamento de Página 12, brindou-se com champagne. Creia-me, leitor, não o fazemos todas as semanas, nem todos os meses, nem todos os anos.
Um juiz espanhol com culhões e consciência de que persegue (em boa lei)
um ditador chileno. A autoridade política de outro país intervindo. A
repercussão na Argentina. O exemplo é, para este escriba, uma boa
vinheta do que é a Justiça universal.
* * *
Em 2003, numa Argentina com governo (muito) diferente, Garzón voltou à
carga. A reação do presidente Nestor Kirchner não foi um nacionalismo de
opereta, nem uma chicana baseada em questões de competência judicial.
Foi acelerar o que já tinha em mente: a revogação das leis de
impunidade. A restauração da Justiça. As vítimas sobreviventes puderam
repetir seus testemunhos em tribunais competentes.
Haviam passado menos de dois anos desde a queda de Fernando de la Rúa. A
mudança nada teve a ver com o vento de proa ou o preço das commodities.
Foi política pura: outra posição ideológica, outro compromisso com as
instituições e as leis. Cada um avaliará quanto pesou a obra de Garzón.
Ninguém poderá negar que muito.
* * *
Meteu-se com criminosos de toda laia: os terroristas de Estado da
América do Sul, o ETA, os para-policiais de seu país. Quando quis
explorar os crimes do franquismo, transpôs um limite. Não o perdoaram.
Assediaram-no com causas sacadas de tribunais menores, que o odeiam.
Esta semana, veio a condenação num deles.
A cena de um tribunal desdenhoso, muito inferior à pessoa que condena, é
um clássico da história universal. A lista de acusados é interminável,
mencionemos alguns: Sócrates, Galileu, Nelson Mandela. Não são casos
idênticos, mas há um padrão comum. A pena imposta a Garzón é tremenda,
uma afronta universal: acabaram com sua carreira como magistrado, nada
menos.
Quando Fidel Castro era um jovem revolucionário, levantado em armas
contra a ditadura de Fulgencio Batista, foi preso e levado diante de um
tribunal. Sua defesa célebre terminava com frases indeléveis: “Tenho
pena de vossas honras e compadeço da mancha sem precedentes que recairá
sobre o Poder Judiciário (…) Condenai-me, não importa, a história me
absolverá”.
A Garzón, a história já absolveu, refutando os juízes que o condenaram,
dignos herdeiros da Santa Inquisição. Este homem digno é um exemplo,
uma referência luminosa muito além da Espanha. Um cidadão do mundo, que
soma a outros méritos ser um importante protagonista da melhor história
argentina.
No Opera Mundi
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