sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Marco regulatório da comunicação: O capítulo da TV por assinatura está em debate

por Renata Mielli - Barão de Itararé

Em 1988, quando o Brasil vivia o auge do processo de transição democrática, a sociedade se mobilizou para aprovar uma Constituição que refletisse o novo ambiente político nacional, caracterizado pela retomada de direitos sociais. A Carta aprovada consolidou esse anseio, mas deixou a efetivação de várias conquistas democráticas para regulamentação posterior.

É o caso do artigo 221, do Capítulo da Comunicação Social. Nele estão consignados os princípios que deveriam reger a produção e programação veiculadas por emissoras de rádio e televisão, a saber: dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promover a cultura nacional e regional, com estímulo à produção independente. Tais diretrizes, sem leis que as regulamentem, transformaram-se em letra morta, um conjunto de intenções que não são passíveis de implementação por não haver parâmetros que as defina.

Este tema é um dos mais importantes quando se discute a urgência de abrir para debate público um novo marco regulatório para as comunicações. Ocorre que, se o governo ainda não demonstrou vontade política de colocar o assunto em pauta, a dinâmica econômica da vida real – imposta por um cenário de convergência tecnológica – nos coloca a oportunidade de efetivar uma parte importante destes princípios, através do debate da regulamentação da lei 12.485 sobre a Comunicação Audiovisual no Serviço de Acesso Condicionado – SeAc , ou nova lei de TV por assinatura.

Apesar de definir regras para o serviço de televisão pago e, portanto, não se aplicar ao serviço de radiodifusão aberta, os conceitos e parâmetros que forem aprovados nesta regulamentação serão, sem dúvida, considerados para o debate do novo marco regulatório.

Daí a importância de toda a sociedade, com destaque particular para o movimento social e entidades que atuam na luta pela democratização da comunicação, participarem ativamente da consulta pública da Ancine sobre a regulamentação do SeAc.

Os avanços da lei 12.485

A análise sobre as conquistas obtidas pela nova lei da TV por assinatura precisa ser feita considerando a correlação de forças entre os diversos setores envolvidos no debate e os pontos que representam um passo adiante tanto na efetivação de direitos, quanto na organização econômica deste setor.

A nova lei avança ao tratar das duas dimensões constituintes da atividade econômica da radiodifusão: a infraestrutura e a produção de conteúdo. É a primeira legislação brasileira que foi construída efetivamente para um cenário de convergência. Define claramente as diferentes atividades envolvidas na prestação deste serviço: distribuição, empacotamento, programação, produção e atribui a regulação de cada uma destas dimensões ao órgão regulador afim. Todas as atividades vinculadas à infraestrutura serão reguladas pela Anatel, e as atividades de produção pela Ancine.

A espinha dorsal da nova lei

A regulação da atividade de produção é um ponto de tensão e tem sido alvo de críticas, principalmente dos empresários do setor, que desde o primeiro momento se colocaram firmemente contrários aos aspectos da lei que tratam da produção de conteúdo.

A ABTA, Associação Brasileira de TV por Assinatura, chegou a divulgar uma ampla campanha contra a aprovação do projeto de lei, argumentado que queriam decidir o que o assinante iria assistir. Permanecem sendo contra as cotas de veiculação de conteúdo brasileiro, inclusive com ações judiciais argumentando a inconstitucionalidade do dispositivo.

Tudo isso, principalmente, porque a lei e sua regulamentação trazem definições sobre o conceito de conteúdo audiovisual brasileiro e conteúdo audiovisual brasileiro independente. Estes dois aspectos foram tratados com prioridade na proposta de regulamentação apresentada pela Ancine. A lei aprovada trazia uma brecha que poderia permitir uma interpretação mais ampla na definição de produto brasileiro independente.

Esta brecha foi fechada pela Agência, porque a proposta de instrução normativa deixa explícito que os direitos patrimoniais da obra serão observados para a classificação de um produto audiovisual. Para ser conteúdo independente, “o poder dirigente sobre o patrimônio da obra audiovisual deve ser detido por uma ou mais produtoras brasileiras independentes, para o qual serão observadas as condições de controle, coligação ou vínculo com: empresa concessionária de serviço de radiodifusão e/ou agente econômico que exerça atividade de programação ou empacotamento que detenha o direito de comunicação pública sobre o conteúdo audiovisual produzido” (sic).

Esta conceituação é estratégica, porque garante a espinha dorsal da lei: diversificar o que é veiculado nas TV’s por assinatura. Caso não ficasse claro que o direito patrimonial da obra é determinante para a sua classificação, corria-se o risco de, por exemplo, a Rede Globo ou outras emissoras serem caracterizadas como produtoras independentes, o que claramente desvirtuaria um aspecto central da lei.

Cota gera estímulo de produção e audiência

Mesmo respondendo por apenas uma fatia do mercado da televisão nacional, são cerca de 12,7 milhões de domicílios com TV por Assinatura, existe uma forte tendência de crescimento deste setor. Por isso, a garantia de espaço qualificado para veiculação de uma cota de produtos brasileiros, ainda que inicialmente pequena – 3h30 minutos semanais no horário nobre, sendo metade destes para conteúdo brasileiro independente – é um instrumento efetivo de diversificação dos contéudos, de estímulo econômico à cadeia produtiva do audiovisual brasileiro e tem um papel positivo na formação da audiência.

Se é verdade que a televisão possui um poder inquestionável de ditar valores e comportamentos, de difundir ideologias e construir imaginários coletivos, reservar espaços para veicular produtos nacionais é essencial para formar uma nova audiência para estes conteúdos. Sem dúvida isso terá outros reflexos positivos, que no médio e longo prazos poderão ser sentidos nas salas de cinema e até na demanda por mais produtos nacionais, forçando as emissoras a oferecerem mais horas destes produtos do que o piso previsto pela cota.

Há vários aspectos que precisam ser vistos mais atentamente na regulamentação da lei. Por exemplo, as regras para reprises, que incidem diretamente sobre a política de cotas, serão disciplinadas a posteriore para um período de 12 meses. Está claro que uma das características da TV por assinatura é a oferta de um mesmo produto em horários e dias alternativos. Mas esta disciplina não pode ser uma forma das programadoras burlarem o que se pretende com a política de cotas – estímulo à produção, diversidade e formação de audiência.

As tumultuadas relações econômicas

Outro item que tem suscitado amplo debate na regulamentação da lei é a interpretação que será dada para coligação e controle entre as empresas das diferente atividades econômicas envolvidas na prestação do serviço de acesso condicionado.

A lei permite duas interpretações sobre a questão, uma dada pela resolução 101/99 da Anatel e outra pela lei das sociedades anônimas. E isto tem impacto direto sobre qual será a posição que a Globo vai ocupar nesta cadeia. Apesar de ser acionista minoritária na NET, após sua venda para o mexicano Carlos Slim, a Globo ainda tem poder de controladora, indicando conselheiros com poderes decisórios e de veto.

A Anatel já se posicionou, e vai adotar a sua resolução para regulamentar a atividade de distribuição. Segundo a resolução 101/99, controle é o “poder de dirigir, de forma direta ou indireta, interna ou externa, de fato ou de direito, individualmente ou por acordo, as atividades sociais ou o funcionamento da empresa”. Portanto, a agência já determinou a venda de ações e a mudança na organização societária da Net Serviços.

A Ancine optou por usar os parâmetros definidos pela Lei das S/A, segundo a qual o controle se dá pela “maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”. Assim, mesmo com a determinação da Anatel, a Globo poderá ter poder decisório nos assuntos relativos às atividades de empacotamento, que segundo a Lei 12.485 é livre para ser exercida por qualquer empresa.

Ao publicar sua Instrução Normativa, a Ancine deixa claro que tomou uma decisão política ao adotar uma regra mais rígida para determinar os conceitos de conteúdo brasileiro e independente e uma regra mais flexível para tratar o assunto das coligações. Sua opção certamente levou em conta a correlação de forças para garantir a efetivação daquilo que a agência considera essencial no projeto.

O enfrentamento ao império das organizações Globo, mas principalmente aos mecanismos de monopólio e oligopólio, que são vedados pelo parágrafo 5º do Artigo 220 da Constituição – estes também sem regulamentação –, é assunto que precisa ser assumido pelo governo e é parte das discussões do marco regulatório das comunicações. E, como dito no início, não aparece entre os temas prioritários da agenda do Ministério das Comunicações.

Entre limitações e avanços, a lei 12.485 e sua regulamentação irão abrir um novo cenário para a comunicação audiovisual no Brasil. Acompanhar e interferir neste debate é fundamental para avançar posições e movimentar a correlação de forças positivamente no sentido de democratizar a comunicação.

*Renata Mielli é jornalista, diretora do Centro de Estudos Barão de Itararé e da executiva do FNDC. Autora do blog Janela sobre a Palavra

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