Por Fernanda Braune
Na virada de 2007 para 2008, a divulgação de casos de febre amarela no
Brasil deixou a população assustada, aumentando a busca pela vacina
contra a doença, cujos efeitos colaterais causaram um número de mortes
maior do que a média. De quem é a culpa? “Da mídia”, diriam muitos,
quase automaticamente. Dessa vez, no entanto, a resposta vem de um
estudo acadêmico. Em sua dissertação de mestrado, realizada no Programa
de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), a
jornalista Cláudia Malinverni analisou a cobertura da Folha de S.Paulo à época e concluiu que o jornal exagerou ao proclamar uma epidemia que não existiu de fato.
Segundo a pesquisadora, o noticiário ignorou os boletins oficiais do
Ministério da Saúde, como o de 28 de fevereiro de 2008, que dizia que
todos os casos de febre amarela confirmados desde dezembro do ano
anterior estavam associados ao ciclo silvestre da doença – quando não há
perigo de epidemia, já que se concentram em áreas de florestas e matas.
Malinverni se debruçou sobre 118 matérias da Folha (edições
veiculadas na Grande São Paulo, exceto na região do ABC) relacionadas ao
tema, que circularam entre os dias 21 de dezembro de 2007 e 29 de
fevereiro de 2008, no auge da suposta epidemia.
De acordo com os dados da pesquisa, o noticiário teria dado espaço
desproporcional ao assunto – em termos de relevância social e perigo
real –, tratado o tema de forma majoritariamente subjetiva e se apoiado
fortemente em fontes contrárias às declarações de normalidade da febre
amarela sustentadas pelos gestores públicos.
Além disso, a divulgação contínua do número de casos suspeitos, com
destaque para os óbitos, teria ajudado a deslocar a doença “do seu
sentido epidemiológico silvestre, um evento de ocorrência espacialmente
localizado e de gravidade delimitada, para o urbano, caracteristicamente
epidêmico e consideravelmente mais grave”.
O secretário de redação da Folha, Rogério Gentile, contesta os
dados da pesquisa e afirma que “os números de mortes justificaram o
destaque que o jornal deu ao assunto”. Segundo boletim oficial do
governo, 19 pessoas morreram em decorrência da doença nos dois primeiros
meses de 2008, seis a mais do que em todo o ano de 2007. Em 2006, foram
confirmados três óbitos, um a mais do que no ano anterior.
Gentile até admite que talvez o jornal tenha exagerado no tom da
cobertura, mas ressalta que os jornalistas tiveram o cuidado de não
caracterizar o número do aumento de casos como sendo uma epidemia. Isso
poderia ser comprovado, por exemplo, nas matérias “‘Risco de epidemia
urbana é remoto’, dizem especialistas”, de 9/1/2008, e "Para médicos,
não há motivo para alarde", de 14/1/2008.
Riscos omitidos
Ainda segundo o estudo de Malinverni, para acabar com a “epidemia”, o
jornal teria enfatizado a vacinação como única forma de proteção à
doença. Na própria matéria “Risco de epidemia é remoto”, dizem
especialistas, um dos médicos ouvidos, Vicente Amato Neto, diz: “Se os
casos continuarem aumentando, o país terá de avaliar uma vacinação em
massa.” “O maior problema, nesse ponto, é que a cobertura não salientou
os riscos que a vacina comporta”, critica a pesquisadora.
Os riscos da vacinação contra a febre amarela são poucos. Existe um
consenso entre os órgãos de saúde que apenas de 2% a 5% dos vacinados
sofrem algum sintoma. Mas, como qualquer remédio, sempre há riscos de
efeitos colaterais, alguns graves. No caso da vacina antiamarílica, a
reação mais perigosa é a doença viscerotrópica, que pode causar choque,
derrame pleural e abdominal e falência múltipla dos órgãos.
Naquele verão (2007-2008), foram distribuídas cerca de 13,6 milhões de
doses de vacina antiamarílica. As reações à imunização, que são raras no
país, foram oito vezes registradas em 2008, sendo que seis delas
resultaram em morte.
“Na contramão de leigos que proclamavam a urgência de imunização
universal, em várias ocasiões ouvimos infectologistas que a condenaram”,
argumenta Rogério Gentile. Um exemplo seria uma entrevista concedida
por Dráuzio Varella à Folha, na qual o famoso médico explica os riscos
da vacinação. Gentile destaca ainda que o próprio governo, médicos e
pesquisadores também não alertaram, de antemão, para os riscos da
vacinação.
Para Cláudia Malinverni, os impactos da cobertura jornalística sobre o
sistema público de saúde demandam uma discussão crítica sobre o papel da
imprensa no campo da saúde, particularmente da saúde pública.
Doença com dois ciclos
Já na avaliação do secretário de redação da Folha, o que ficou
evidente no episódio é que houve sérias falhas na interlocução entre
governo, academia e imprensa. “Por isso, não é honesto atribuir apenas a
uma parte a responsabilidade pelos desfechos negativos”, defende. Fato é
que, enquanto não houver um melhor entendimento entre os sistemas de
poder midiático, governamental e científico, quem perde é o leitor.
A febre amarela é uma doença infecciosa aguda, causada por um vírus,
que ocorre na América Central, América do Sul e África. Existem dois
tipos de ciclo da enfermidade, o silvestre e o urbano. Eles se diferem
quanto aos vetores (os mosquitos Haemagogus e Sabethes no ciclo
silvestre e Aedes Aegypti no urbano), hospedeiros (animais, na maioria
dos casos, e humanos) e áreas de ocorrência (campo e cidade).
Os sintomas aparecem de três a seis dias depois que a pessoa é picada
pelo mosquito infectado. As manifestações incluem febre alta, dor de
cabeça, cansaço, dor muscular e calafrios. Náuseas e diarreia também
podem ocorrer. Cerca de 85% das pessoas contaminadas consegue se
recuperar em três ou quatro dias após o surgimento dos sintomas. Desde a
década de 1940, o Brasil não registra casos de febre amarela urbana –
os três últimos ocorreram em 1942, na cidade de Sena Madureira, no Acre.
***
[Fernanda Braune, do Ciência Hoje On-line]
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