domingo, 25 de março de 2012

Faces de uma sociedade injusta


Rodolpho Motta Lima

Quando se analisam  as gritantes diferenças na valorização de pessoas que integram uma mesma sociedade, não raro se apontam, como justificativas para as diversidades  registradas, os excepcionais “méritos”  do mais valorizado, aquele que venceu na vida mercê da sua determinação, da persistência na perseguição de metas, da capacidade extrema  de sacrifício em prol de objetivos definidos, do espírito empreendedor, proativo, um líder nato e com  dotes  intelectuais privilegiados que lhe permitiram o sucesso. Alguém para quem o “democrático” sistema capitalista estaria sempre de portas abertas, em processo de seleção “natural” da espécie que garante as batatas para o vencedor...

Do outro lado estaria, para um certo pensamento aristocrático, oligárquico, elitista ou de qualquer outra adjetivação, o indivíduo sem ambição, de objetivos tacanhos,  incapaz de mover-se e elegendo a passividade ou a preguiça como postura fundamental  e que, por deixar de aproveitar as oportunidades de uma sociedade aberta, deve, em consequência, viver  as merecidas dificuldades e agruras de quem não soube correr atrás...

Para quem pensa assim, as desigualdades sociais podem até ser lamentáveis, mas têm sua razão de ser. Para quem pensa assim, a Humanidade sempre terá os comandantes e os comandados, os vencedores e os vencidos, aqueles ungidos de muitas virtudes, estes destituídos de quase todas elas. E é natural, então, que haja poucos ricos e muitos pobres no mundo...

Só para argumentar, vamos esquecer por instantes todo esse aparato político-ideológico que se arma, nas sociedades capitalistas (ditas democráticas), para garantir a perpetuação das oligarquias, das elites. Vamos esquecer, por exemplo, a condenação prévia à estagnação  que se faz aos “mal nascidos” quando se trata com descaso  a saúde e a educação dos mais pobres. Vamos esquecer, só por momentos, os permanentes cenários de exploração do homem pelo homem, do mais fraco pelo mais forte, garantida institucionalmente por sistemas  jurídicos e econômicos  produzidos e geridos pelos que têm poder. Vamos fingir que isso não existe e, só para argumentar, vamos imaginar que a tal “seleção” seja realmente “natural”.

A revista “Forbes” acaba de divulgar – como o faz todos os anos - a relação dos homens mais ricos do mundo. O primeiro deles – o mexicano Carlos Slim Helú -  teria amealhado uma fortuna da ordem de 69 bilhões de dólares, equivalente a 117 bilhões de reais, ao câmbio atual. Esse valor é equivalente à remuneração de 30 anos de trabalho de 390.000 brasileiros que ganham salário mínimo. Ou à fortuna 117 mil brasileiros de classe média alta que tenham conseguido, ao fim de muitas jornadas de trabalho,  um patrimônio de 1 milhão de reais.

A pergunta é óbvia. Será que um pessoa, qualquer que seja, em qualquer situação, sob qualquer justificativa,  pode “valer” 390.000 vezes mais que outra? Ou 117.000 vezes mais? Vamos mais longe: o planeta possui, hoje, 1 bilhão de pessoas na linha da miséria – aquelas que vivem com um dólar por dia, 365 dólares por ano. Em relação ao Sr. Helú, sua fortuna é equivalente ao que auferem em um ano 190 milhões de miseráveis. Uma pessoa pode ter “méritos” 190 milhões de vezes maiores do que outra?

Quando se fala em posicionamentos de esquerda ou de direita, invariavelmente se resvala para um sectarismo que impede que um lado enxergue os valores e argumentos do outro. Considero-me um indivíduo de esquerda, não porque esteja atrelado a esse ou aquele partido político, mas porque me julgo incapaz de aceitar esse mundo de desigualdades tão gritantes. Por isso, estarei sempre onde estiverem as políticas sociais que busquem minimizar esse brutal descompasso social.

Haveria outras considerações a fazer nessa matéria, em que não falo como especialista, que não sou, mas como um indignado permanente, que me considero. Por exemplo: entre os relacionados como  mais ricos do mundo – na quinta colocação - , encontra-se o dono da empresa “Zara”,  com lojas espalhadas pelo mundo inteiro e de badalado conceito no seio das elites, no ramo de vestuários. Essa mesma empresa teve seu nome destacado recentemente entre nós, aqui no Brasil, quando, em São Paulo, uma operação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da SRTE/SP, ao fiscalizar oficinas subcontratadas pela “Zara”, constatou situação definida como de “trabalho escravo”, essa escravidão sem correntes e sem tronco, não mais vinculada à cor da pele,  mas que fere a dignidade humana. Trabalho infantil, jornadas de até 16 horas, cerceamento de liberdade, condições pérfidas de trabalho, remunerações pífias e abaixo dos dispositivos legais, além de discriminações étnicas foram apontadas nas investigações.

A empresa “Zara” alegou uma “terceirização não autorizada” e mencionou um “Código de Conduta” que teria sido violado por uma subcontratada. Acenou com providências corretivas. Pode ser. Não conheço o andamento do processo , de lá para cá.  Mas não deixa de ser irônico, e um convite à reflexão sobre o mundo em que vivemos, que a mesma denominação empresarial frequente o noticiário para referir-se a um megamilionário e a trabalhadores escravos, ambos componentes de sociedades ditas democráticas...

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