Rodolpho Motta Lima
Quando se analisam as gritantes diferenças na valorização de
pessoas que integram uma mesma sociedade, não raro se apontam, como
justificativas para as diversidades registradas, os excepcionais
“méritos” do mais valorizado, aquele que venceu na vida mercê da sua
determinação, da persistência na perseguição de metas, da capacidade
extrema de sacrifício em prol de objetivos definidos, do espírito
empreendedor, proativo, um líder nato e com dotes intelectuais
privilegiados que lhe permitiram o sucesso. Alguém para quem o
“democrático” sistema capitalista estaria sempre de portas abertas, em
processo de seleção “natural” da espécie que garante as batatas para o
vencedor...
Do outro lado estaria, para um certo pensamento aristocrático,
oligárquico, elitista ou de qualquer outra adjetivação, o indivíduo sem
ambição, de objetivos tacanhos, incapaz de mover-se e elegendo a
passividade ou a preguiça como postura fundamental e que, por deixar de
aproveitar as oportunidades de uma sociedade aberta, deve, em
consequência, viver as merecidas dificuldades e agruras de quem não
soube correr atrás...
Para quem pensa assim, as desigualdades sociais podem até ser
lamentáveis, mas têm sua razão de ser. Para quem pensa assim, a
Humanidade sempre terá os comandantes e os comandados, os vencedores e
os vencidos, aqueles ungidos de muitas virtudes, estes destituídos de
quase todas elas. E é natural, então, que haja poucos ricos e muitos
pobres no mundo...
Só para argumentar, vamos esquecer por instantes todo esse aparato
político-ideológico que se arma, nas sociedades capitalistas (ditas
democráticas), para garantir a perpetuação das oligarquias, das elites.
Vamos esquecer, por exemplo, a condenação prévia à estagnação que se
faz aos “mal nascidos” quando se trata com descaso a saúde e a educação
dos mais pobres. Vamos esquecer, só por momentos, os permanentes
cenários de exploração do homem pelo homem, do mais fraco pelo mais
forte, garantida institucionalmente por sistemas jurídicos e
econômicos produzidos e geridos pelos que têm poder. Vamos fingir que
isso não existe e, só para argumentar, vamos imaginar que a tal
“seleção” seja realmente “natural”.
A revista “Forbes” acaba de divulgar – como o faz todos os anos - a
relação dos homens mais ricos do mundo. O primeiro deles – o mexicano
Carlos Slim Helú - teria amealhado uma fortuna da ordem de 69 bilhões
de dólares, equivalente a 117 bilhões de reais, ao câmbio atual. Esse
valor é equivalente à remuneração de 30 anos de trabalho de 390.000
brasileiros que ganham salário mínimo. Ou à fortuna 117 mil brasileiros
de classe média alta que tenham conseguido, ao fim de muitas jornadas de
trabalho, um patrimônio de 1 milhão de reais.
A pergunta é óbvia. Será que um pessoa, qualquer que seja, em
qualquer situação, sob qualquer justificativa, pode “valer” 390.000
vezes mais que outra? Ou 117.000 vezes mais? Vamos mais longe: o planeta
possui, hoje, 1 bilhão de pessoas na linha da miséria – aquelas que
vivem com um dólar por dia, 365 dólares por ano. Em relação ao Sr. Helú,
sua fortuna é equivalente ao que auferem em um ano 190 milhões de
miseráveis. Uma pessoa pode ter “méritos” 190 milhões de vezes maiores
do que outra?
Quando se fala em posicionamentos de esquerda ou de direita,
invariavelmente se resvala para um sectarismo que impede que um lado
enxergue os valores e argumentos do outro. Considero-me um indivíduo de
esquerda, não porque esteja atrelado a esse ou aquele partido político,
mas porque me julgo incapaz de aceitar esse mundo de desigualdades tão
gritantes. Por isso, estarei sempre onde estiverem as políticas sociais
que busquem minimizar esse brutal descompasso social.
Haveria outras considerações a fazer nessa matéria, em que não falo
como especialista, que não sou, mas como um indignado permanente, que me
considero. Por exemplo: entre os relacionados como mais ricos do mundo
– na quinta colocação - , encontra-se o dono da empresa “Zara”, com
lojas espalhadas pelo mundo inteiro e de badalado conceito no seio das
elites, no ramo de vestuários. Essa mesma empresa teve seu nome
destacado recentemente entre nós, aqui no Brasil, quando, em São Paulo,
uma operação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da
SRTE/SP, ao fiscalizar oficinas subcontratadas pela “Zara”, constatou
situação definida como de “trabalho escravo”, essa escravidão sem
correntes e sem tronco, não mais vinculada à cor da pele, mas que fere a
dignidade humana. Trabalho infantil, jornadas de até 16 horas,
cerceamento de liberdade, condições pérfidas de trabalho, remunerações
pífias e abaixo dos dispositivos legais, além de discriminações étnicas
foram apontadas nas investigações.
A empresa “Zara” alegou uma “terceirização não autorizada” e
mencionou um “Código de Conduta” que teria sido violado por uma
subcontratada. Acenou com providências corretivas. Pode ser. Não conheço
o andamento do processo , de lá para cá. Mas não deixa de ser irônico,
e um convite à reflexão sobre o mundo em que vivemos, que a mesma
denominação empresarial frequente o noticiário para referir-se a um
megamilionário e a trabalhadores escravos, ambos componentes de
sociedades ditas democráticas...
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