sexta-feira, 9 de março de 2012

Retratação de Valcke é jogo de cena


Por Mair Pena Neto

Nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, o gerente de imprensa do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, Kevin Neuendorf, escreveu em um quadro negro, numa sala do Riocentro, a frase “Bem-vindo ao Congo”. A brincadeirinha desrespeitosa o levou de volta aos Estados Unidos antes mesmo que a competição começasse. Neuendorf era peixe pequeno, e o próprio comitê norte-americano o puniu. Agora, o secretário-geral da Fifa, Jêrome Valcke, elevou o tom da grosseria e disse que o Brasil precisava de “um chute no traseiro” para acelerar os preparativos para a Copa do Mundo de 2014. Valcke é peixe grande, um predador, e tirá-lo da jogada não é tão fácil assim.

Em primeiro lugar, os dois comentários se assemelham na prepotência e no julgamento de que lidam com antigos quintais, dos quais podiam por e dispor. A reação do governo brasileiro, no caso de Valcke, foi apropriada para reforçar a soberania do país e colocar o dirigente esportivo em seu devido lugar.  A afirmação do governo brasileiro de que não aceitava mais o secretário-geral da Fifa como interlocutor para a Copa de 2014 levou a pedidos de desculpas da Fifa e do próprio Valcke, mas a posição deveria ser mantida (enquanto escrevo essa questão não está definida) em nome da honra do país e como medida profilática contra o comportamento imperialista da entidade máxima do futebol.

O episódio que se vive agora é consequência da negociação com um grupo organizado que assumiu o controle da Fifa desde os tempos de João Havelange. E nesse esquema, Jêrome Valcke conquistou seu espaço à base de chantagens. O jornalista inglês Andrew Jennings, que investiga os meandros da Fifa há uma década e já escreveu dois livros sobre o funcionamento do comando do esporte no mundo, contou à Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado que no começo de 2001, Valcke trabalhou para uma companhia francesa que esperava comprar os ativos da falida empresa de marketing ISL, que cuidou dos negócios da Fifa, desde o início da era Havelange, em 1974 (ver coluna “Por um novo nome para o Engenhão, de 8/12/2011). Nessa operação, sua equipe examinou os livros da ISL e descobriu propinas “secretas e polpudas” pagas a autoridades da Fifa.

De posse dessas informações preciosas, Valcke as usou em benefício próprio para renegociar contratos com a Fifa. Dá para imaginar os argumentos que utilizou, diante de uma carta de resposta que recebeu do presidente da entidade, Joseph Blatter, afirmando que a posição da Fifa não seria alterada por “qualquer ameaça ou tentativa de chantagem”. Mas Blatter já estava nas mãos de Valcke e os arroubos foram apenas para inglês ver. Dois anos depois, o presidente da Fifa contratou o chantagista como diretor de marketing da entidade.

Mas as trapaças de Valcke não pararam por aí. Em 2006, ele teve que ser afastado do cargo, por má conduta, depois que um tribunal de Nova York o condenou por ter negociado acordos de patrocínio com a Visa, violando a prioridade que a Mastercard tinha por contrato com a Fifa. A malandragem custou US$ 90 milhões de multa à entidade. Mas menos de um ano depois, Valcke já estava de volta e com um cargo ainda mais importante, o de secretário-geral, o número dois da Fifa.

Valcke é o responsável pelo jogo sujo e Blatter opera por trás. No mesmo depoimento que deu ao Senado brasileiro, Jennings descreveu episódio iniciado em março de 1977, quando a ISL enviou propina de 1,5 milhão de francos suíços (cerca de US$ 1 milhão), que se destinavam ao então presidente da Fifa João Havelange, diretamente para uma conta da entidade. Blatter, à época secretário-geral, ordenou que o dinheiro fosse rapidamente transferido para a conta particular de Havelange.

Estas operações, algumas vezes deixaram rastros. O juiz suíço Thomas Hildebrand, ainda segundo relato de Jennings, descobriu evidências suficientes para provar que duas autoridades da Fifa receberam propina da ISL e que Blatter abafara o caso. Em maio de 2010, o juiz encerrou caso com a seguinte declaração pública: “O juiz de instrução Thomas Hildebrand, em agosto de 2008, começou uma investigação sobre alegações de que certos membros da Comissão Executiva da Fifa receberam propinas por contratos de marketing. Após inquérito, os acusados concordaram em devolver 5,5 milhões de francos e o caso foi encerrado”. Os acusados eram ninguém menos do que Blatter, Havelange e o atual presidente da CBF, Ricardo Teixeira.

É com este tipo de gente que o Brasil está lidando e não pode ficar refém. Se a meia-entrada é lei no país, a Fifa que se curve a ela. Não se justifica criar um período de exceção em nome da realização de uma competição esportiva administrada por mafiosos. Ter aberto as pernas para que bebidas alcoólicas sejam vendidas livremente nos estádios porque uma marca de cerveja patrocina o evento já foi além das medidas.

Em reunião da Comissão Especial da Câmara que analisava a Lei Geral da Copa, em novembro do ano passado, o craque Romário, já na condição de deputado federal, interpelou Valcke questionando como era possível confiar no secretário-geral da Fifa, protagonista do caso Mastercard, para cobrar do Brasil a organização da Copa. O tempo provou que não era mesmo possível confiar, e o governo brasileiro pode, elegantemente, aceitar os pedidos de desculpas da entidade, mas manter pé firme quanto à exclusão deste senhor das negociações futuras.

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