“Cada vez que uma
cigana se aproxima de mim para ler as mãos, peço-lhe por favor, que lhe
pago para que não a leia. Não quero que me digam o que vai acontecer, o
melhor que a vida tem é a curiosidade, e a curiosidade nasce da
ignorância sobre nosso destino. A explosão dos indignados começou na
Espanha e logo estendeu-se para outras partes. É uma boa notícia a
capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro
(intelectual brasileiro já falecido) que o mundo se divide entre os
indignos e os indignados, e é preciso tomar partido, é preciso
escolher”.
Por que esse título, “Los Hijos de los Dias”(1)?
Segundo
os maias, nós somos filhos dos dias, o seja, o tempo é que funda o
espaço. O tempo é nosso pai e nossa mãe, e sendo filhos dos dias, o mais
natural é que de cada dia nasça uma história. Estamos cheios de átomos,
mas também de histórias.
Dentro dessas
histórias, há muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala:
“vivemos em um mundo inseguro”. A particularidade é que sugere que
existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que você se refere?
Muitos políticos no mundo inteiro – não é algo que acontece somente em
nosso país – exploram uma espécie de histeria coletiva a respeito do
tema da insegurança. Te ensinam a ver o próximo como uma ameaça e te
proíbem vê-lo como uma promessa; ou seja, o próximo - esse senhor e essa
senhora que andam por aí – podem te roubar, violar, seqüestrar, mentir,
rara vez te oferecer algo que valha a pena receber. Creio que isso faz
parte de uma ditadura universal do medo. Estamos treinados para ter medo
de tudo e de todos, e essa é a justificativa necessária para a
estrutura militar do mundo. Este é um mundo que destina metade de seus
recursos para a arte de matar o próximo. Os gastos militares - que são o
nome artístico dos gastos criminais – necessitam de uma justificativa.
As armas necessitam de guerra, assim como os abrigos necessitam de
inverno.
Quando fala dos medos, você joga
com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma história que é
“os medos de comunicação”. Que lugar você atribui aos meios para esses
medos?
Às vezes os meios atuam como
“medos” de comunicação, então se transformam em “medos de
incomunicação”. Isso não é verdade para todos, mas sim para alguns meios
que no mundo inteiro exploram essa espécie de histeria coletiva
desatada pelo tema da insegurança. Mentem, por que a insegurança não se
reduz à insegurança que pode se sentir nas ruas. Inseguro é este mundo, e
em primeiro lugar está a insegurança no trabalho, que é a mais grave de
todas, e da qual os políticos que exploram o problema da insegurança
nunca falam. Não há nada mais inseguro que o trabalho. Todos nos
perguntamos: “Haverá amanhã quem me compre? Voltarei ao local de
trabalho onde estive? Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse
medo real de perder o emprego ou de não encontrá-lo é a fonte de
insegurança mais importante. Por sua vez, inseguro é o mundo, a
quantidade pessoas que matam com os carros nisso que chamamos de
acidentes de trânsito, que na realidade são atos criminais por conta de
motoristas que, que tirando suas licenças para dirigir, tem licença para
matar, ou a insegurança da maioria das crianças que nascem no mundo
condenadas a morrer muito cedo de fome ou de doenças curáveis”
Aparecem
as histórias dos desaparecidos, mas menciono-lhe uma em particular,
chamada de “Plano Condor”, onde a história que é contada pertence a
Macarena Gelman. Como foi para você conhecer Macarena Gelman?
Comecei por conhecer o pai de Macarena, Marcelo, e o avô, Juan Gelman,
com quem trabalhei na Revista Crisis, em Buenos Aires, e que é meu
amigo de toda a vida. São muitos anos de amizade, ou melhor, de
irmandade. Juan teve que sair da Argentina para continuar vivo, naqueles
dias vividos em Buenos Aires, onde era preciso ir embora ou
esconder-se. Então, eu recebia com muita frequência seu filho Marcelo,
fazendo o papel de seu pai por algum tempo; depois o mataram, e a outra
história é bastante conhecida.
A mulher de
Marcelo, Maria Cláudia, foi seqüestrada na Argentina. Eram acusados do
delito de agitar, delitos de dignidade que tem a ver com o direito
estudantil de protestar. Esses eram os crimes de jovens como eles, que
foram assassinados muito cedo. Maria Cláudia foi assassinada no Uruguai,
onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o que melhor
funcionou até hoje, por que o Mercosur ainda tem graves dificuldades. O
mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas de terror, onde as
ditaduras trocavam favores. Mandaram Maria Cláudia grávida para o
Uruguai, e aqui os militares uruguaios assumiram a responsabilidade da
tarefa. Esperaram que ela parisse, ela passou seus últimos dias ou
talvez seus últimos meses na sede de Boulevard Artigas y Palmar do SID
(2), onde foi inaugurada a placa em memória a Maria Claudia e a todos os
que estiveram lá.
Impressionou-me o contraste
entre a beleza exterior desse palácio e os horrores que ele escondia.
Depois dela dar à luz a mataram, e entregaram seu filho a um policial:
troca de favores. A partir de uma complicada busca de Juan e seus
amigos, conseguiu-se encontrá-la, e agora ela se chama Macarena Gelman.
Nos tornamos muito amigos, e certa vez almoçando em casa, contou-me esta
história, que é parte da história dos filhos dos dias.
É uma história muito íntima, muito privada, e lhe pedi autorização para
publicá-la. É uma história incomum, mas reveladora. Conta que, quando
ainda não sabia quem era e vivia na outra casa, com outro nome, nesse
período sofria contínuas insônias, que não a deixavam dormir à noite por
que a perseguiam sempre os mesmos pesadelos. Via alguns senhores
desconhecidos, muito armados, que a buscavam no quarto onde estava
dormindo, em baixo da cama, no roupeiro, em todas as partes, e ela
acordava gritando e angustiadíssima.
Durante
muitíssimo tempo, por toda a sua infância, teve esses pesadelos que a
perseguiam e ela não sabia por quê, de onde vinham. Até que conheceu sua
verdadeira história, e soube que ela estava sonhando os pesadelos que
sua mãe tinha vivido enquanto a modelava em seu ventre. A mãe, uma
estudante de apenas 19 anos, era perseguida de verdade por outros
senhores armados até os dentes, que a encontraram e a mandaram ao
Uruguai para morrer. Macarena estava no ventre dessa mulher acuada e
perseguida. Do ventre, ela padecia a perseguição que sua mãe sofria, e
depois ela sonhou isso e o transformou em seus próprios pesadelos. Ela
sonhou o que sua mãe tinha vivido. É uma história que parece uma
metáfora da transmissão, dos sofrimentos, dos horrores, e também de
outras continuidades que não são todas horríveis.
É um livro que contém muitas histórias de mulheres. Por quê?
Também há muitas histórias de mulheres em meus livros anteriores, como Espelhos e Bocas do Tempo.
Há muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres ainda são bastante
invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das culturas ignoradas,
das pessoas ignoradas que merecem ser redescobertas, por que tem algo
que dizer e que vale a pena ouvir.
Neste último livro, Os filhos dos dias,
há uma história que me impressionou muito, que até agora não tinha
escrito ainda, que é de Juana Azurduy. Juana foi uma heroína das guerras
de independência. Encabeçou a tomada do Cerro de Potosi, que estava nas
mãos dos espanhóis. Ela era a caudilha de um grupo guerrilheiro que
recuperou Potosi das mãos dos espanhóis. Depois continuou lutando pela
independência, e perdeu seus sete filhos e o marido nessa guerra.
Finalmente, foi enterrada numa fossa comum, tendo morrido na pior
pobreza que se possa imaginar. Antes, tinha recebido um título militar, e
foram as forças independentistas que lhe deram esse título que dizia no
mérito: “à sua viril coragem”. Necessitou-se de muito tempo para que
uma presidente argentina, Cristina Fernandez, lhe outorgasse o título de
General por sua “feminina valentia”.
Um
integrante da Real Academia Espanhola assinalou como um erro utilizar
expressões que sobrecarreguem a linguagem. Era uma crítica à
feminilização, como, por exemplo, se utiliza todos e todas. O que você
pensa a respeito?
O transcendente é o que
há por trás, ainda que por vezes, os conteúdos se reflitam nas palavras
que os expressam. Me parece muito ridículo quando uma mulher se
apresenta a mim e me diz “sou médico”. “É médica”, respondo-lhe.
Há
muitas histórias dos povos originários, da luta pelos recursos
naturais, e o rol das multinacionais. Em particular, uma história
dedicada à selva amazônica..
Essa história
sobre a selva amazônica lembra que a Texaco, empresa petroleira que
derramou veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da selva
equatoriana. Foi à julgamento, mas perdeu. As vítimas desse atentado à
natureza e as pessoas desse local não tinham meios econômicos, enquanto
que a Texaco contava com centenas de advogados. Contudo, depois de anos,
a ação foi ganha, mas ainda não foi colocada em prática por que há
muitas maneiras de apelar, de jogar a bola para fora, e para isso não
faltam doutores.
No livro, há um olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não despenalizaram o aborto..
O livro toca todos os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
As 366 histórias não são somente latino-americanas, você recorre o mundo.
Há muitas histórias que merecem ser recuperadas. Luana, por exemplo,
foi a primeira mulher que assinou seus escritos em tabuletas de barros.
Aconteceu há quatro mil anos, e dizia que escrever era uma festa. Essa
mulher é desconhecida, e vale a pena contar que essa história existiu.
A respeito da crise internacional, você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento dos indignados na Espanha..
Essa crise provém de um círculo muito pequeno de banqueiros
onipotentes. Ocorreu-me, para essa história, um título sinistro que foi
”Adote um banqueirinho”. Os responsáveis pela crise são os que mais tem
se queixado e os que mais dinheiro receberam. Eles têm sido
recompensados por afundar o planeta. Todo esse dinheiro destinado aos
que causaram o pior desastre na história da humanidade teria sido
suficiente para dar de comer aos famintos do mundo, com sobremesa
incluída.
Não lhe parece uma contradição a
existência do movimento dos indignados e que ao mesmo tempo o Partido
Popular tenha ganho na Espanha?
A
aparição dos indignados é das coisas mais belas que ocorreram no mundo
nos últimos tempos. Creio que o melhor da vida é a sua capacidade de
surpresa. O melhor dos meus dias é o que eu ainda não vivi. Cada vez que
uma cigana se aproxima de mim para ler as mãos, peço-lhe que, por
favor, lhe pago para que não a leia. Não quero que me digam o que vai me
acontecer, o melhor que ávida tem é a curiosidade, e a curiosidade
nasce da ignorância do nosso destino. A explosão dos indignados começou
na Espanha, e logo se estendeu para outras partes. É uma boa notícia a
capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro,
que o mundo se divide entre os indignos e os indignados, e que é
preciso tomar partido, é preciso escolher.
Lembrei-me muito dele quando surgiu esse movimento. Jovens que perderam
seus empregos e suas casas por responsabilidade desses malabarismos
financeiros que terminaram por despojar os inocentes de seus bens. Não
foram eles que concederam empréstimos impossíveis, não foram eles os
culpados da bolha financeira, e desse disparate que acontece na Espanha,
de construir e construir, e agora o país está cheio de moradias
desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou as
eleições, é verdade. A direita ganhou as eleições, e é preciso lutar
para que isso mude. Isso que aconteceu na Espanha também fala do
desprestígio das forças de esquerda que nascem na vida política
prometendo mudanças radicais e depois terminam repetindo a história, em
vez de mudá-la. Muita gente, sobretudo os mais jovens, se sente enganada
e abandonou a política.
(1) Os filhos dos dias (N.do T.)
(2) Uma das sedes do Serviço de Informação da Defesa (SID) do Uruguai. (N. do T.)
Via Aporrea
Tradução: Renzo Bassanetti
Ana Maria Mizrahi
Nenhum comentário:
Postar um comentário