Por Wilson Roberto Vieira Ferreira
Animações para o publico infantil apontam para uma característica recorrente: o desaparecimento dos pais no imaginário infantil. Dos "Flintstones" dos anos 1960 aos atuais "Backyardigans" ou "Charlie e Lola" encontramos o progresssivo desparecimento simbólico e literal dos pais nas narrativas. É o sintoma do anacronismo da família como agência sociaizadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento que oferecem modelos mais atraentes de "super-pais".
Nessa semana discutia com os alunos do curso de Comunicação da
Universidade Anhembi Morumbi algumas ideias da Escola de Frankfurt. Mais
precisamente, discutia a atualidade dos famosos “Estudos sobe a
Autoridade e a Família” que Theodor Adorno e Max Horkheimer empreenderam
na década de 1950.
Nesses estudos os autores encontraram uma tensão dialética no
interior da família no capitalismo tardio: de um lado, a família podia
ser vista como a terrível matriz dos mecanismos de internalização da
submissão (agência psicológica da sociedade), mas, do outro, a
possibilidade de se tornar uma oposição crítica ao Estado Totalitário.
Principalmente no momento atual em que a chamada Indústria Cultural
esvazia a autoridade e competência da família, tornando-a um suplemento
supérfluo já que toda a indústria das celebridades e entretenimento
suplantaram a figura paterna ao oferecer novas figuras de “super-pais”
como modelos de internalização da autoridade.
Exatamente nesse momento em que a função de socialização da família
desaparece para transformar-se em meras imagens paródicas em filmes
publicitários de cereais matinais e margarinas (imagens congeladas de
felicidade), a instituição familiar pode tornar-se uma instância
“negativa”: libertar a inteira estrutura familiar da sua tradicional
função repressiva e “realizar o princípio do amor”, como afirmava
Adorno.
Família na Publicidade: imagens congeladas de felicidade |
Nas discussões em aula alguns alunos associaram essa discussão da
Escola de Frankfurt a um fenômeno recorrente em animações infantis
atuais em canais de TV especializados como Discovery Kids ou Cartoon Network:
o desaparecimento dos pais no imaginário infantil. Em animações como
“Charlie e Lola” ou “Pink Dink Doo”, por exemplo, vemos irmãos que se
ajudam mutuamente e vivem aventuras materializadas pelo poder da
imaginação, solitários em seus quartos sem nunca os pais aparecerem, nem
como agentes repressores ou punitivos.
Quando aparecem (e muitos vezes são tios ou avós), são mostrados da cintura para baixo pelo ponto de vista da altura da criança.
O sumiço dos pais em desenhos animados e HQs não é novidade, mas com
motivos diferentes. Por exemplo, se não me falha a memória na cidade de
Patópolis (onde habitam os personagens de Walt Disney), não há pais, mas
sobrinhos e tios. Patos nascem de ovos sem pais por um motivo simples:
encobrir a sexualidade na moralista sociedade norte-americana
pós-guerra.
A partir dos desenhos animados da Hanna-Barbera na década de 1960,
famílias do passado e do futuro são apresentadas com pais anacrônicos e
incapazes de criar um sentido para a vida conjugal e familiar. Em “Os
Flintstones” Fred é desajeitado, corrompível e com uma moralidade regida
pela lei do menor esforço enquanto a esposa Wilma é incapaz de por
ordem no caos. Os filhos são mais inteligentes. E no futurista “Os
Jetsons” a incapacidade paterna é potencializada pelas armadilhas
tecnológicas (levar um cachorro robô para passear em uma esteira rolante
transforma-se em uma aventura de dimensões épicas).
Se em Hanna-Barbera pelos menos os pais ainda apareciam como
protagonistas das tramas, nas animações atuais exibidas em canais
especializados os pais simplesmente desaparecem ou apenas é um elemento a
mais do pano de fundo da imaginação infantil.
A Família Anacrônica
Os “Estudos sobre Autoridade e Família” de Adorno e Horkheimer
detectaram o momento em que a tradicional família burguesa (a
patriarcal) tornava-se anacrônica, esvaziada em suas funções de agência
de socialização pela Indústria Cultural.
Os Flintstones: pais anacrônicos |
No início do capitalismo a família burguesa cumpriu muito bem o seu
papel de adestramento para a adequação social dos indivíduos. Nos tempos
da ética protestante do trabalho, o princípio luterano de “temer e
amar” era eficientemente aplicado como processo de legitimação da
autoridade do pai pois, diante do filho, ele sempre tinha razão pois
nele se concretizavam as imagens do poder e do sucesso.
Assim formavam-se homens para a sociedade, através da racionalização
da autoridade e poder pelo temor/amor. David Riesman no livro “A
Multidão Solitária” chamaria essa indivíduo de “intra-dirigido”, isto é,
aquele que se orienta no mundo através de valores firmemente
interiorizados pela família.
Mas num mundo onde a propriedade burguesa desaparece para muitos e o
conceito de herdeiro é esvaziado de todo significado, esse princípio de
autoridade entra em crise. Da família burguesa, surge a “família
nuclear” com um grupo reduzido onde os pais lutam pela sobrevivência em
trabalhos assalariados onde a energia psíquica é inteiramente consumida,
restando aos filhos serem deixados diante da indústria cultural (em
creches multimidiáticas ou, simplesmente, diante da TV ou games de
computadores).
A figura dos pais (sempre exaustos e cercando os filhos com excessos
de solicitude para diluir a culpa pelo “abandono” – na verdade a culpa
por não cumprir o papel idealizado pelas imagens da antiga família
burguesa) deixa de ser a de poder e sucesso. Para os filhos o modelo de
autoridade passa a ser as das celebridades midiáticas, como bem
observaram Adorno e Horkheimer:
“Da sua relação com o pai, a criança extrai apenas a ideia abstrata de poder e de uma força arbitrária e sem limites, e busca um pai mais forte, mais poderoso que o pai real, o qual já não corresponde à velha imagem; em suma, uma espécie de superpai, tal como foi produzido pelas ideologias totalitárias” (ADORNO, T., HORKHEIMER, M. “Lezioni di sociologia” In: CANEVACCI, M. Dialética da Família. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.222).
Mas a relação que os filhos vão ter com esses superpais midiáticos
não será mais de temor/amor, mas, agora, de amor/frustração: dentro de
uma instituição anacrônica o indivíduo está só e procura nos superpais
da mídia o modelo de celebridade como a de uma pessoa amada, popular e
famosa, assim como ele gostaria de ser. Mas apenas encontra a frustração
ao saber que será apenas mais outro anônimo a desejar um modelo
inatingível de pessoa amada e desejada.
Em suma, o novo modelo de autoridade é baseado na frustração e no conformismo individual que resulta numa compreensão da vida minimalista ou sobrevivencialista, na renúncia consciente de todo ou qualquer modelo de utopia ou superação: “substitua o desejável pelo possível”, “faça a sua parte” etc.
A Família Desencorajada
Muito do anacronismo da família vem da necessidade do capitalismo tardio ressocializar os indivíduos, desta vez como consumidores dependentes do mercado. Por isso, a partir da década de 1920 a Publicidade empreendeu um vasto esforço pedagógico para desencorajar a produção doméstica ou familiar.
Por exemplo, os saberes sobre como cuidar dos filhos, uma das funções socializadoras da família burguesa, é desencorajada ou descartada como superada diante da ciência das grandes corporações como a Johnson & Johnson (veja figura ao lado). Ou ainda, de forma mais agressiva, um anúncio do suplemento “Folha Teen” do jornal “Folha e São Paulo”, onde denuncia a incapacidade dos pais em compreender adolescentes, se nem as funções do controle remoto conseguem entender! (veja abaixo).
Nessa perspectiva, o desaparecimento dos pais no imaginário infantil dos desenhos animados parece ser um sintoma da situação anacrônica da família e da função paterna numa sociedade onde os indivíduos são socializados para serem consumidores fascinados por superpais-celebridades.
A antiga família burguesa permanece na mídia como parodia; Por exemplo, na animação “Backyardigans” cada aventura da turma termina com um ronco no estômago de fome, mostrando que é hora de voltar para casa (o idealizado lar burguês: um sobrado com um vasto quintal no fundo com playground). “Vamos comer um bolo de chocolate”, diz um deles. Mas quem fez o bolo de chocolate? Os pais nunca aparecem.
Por isso Adorno e Horkheimer viram no esvaziamento da função de legitimação da autoridade da família a oportunidade dessa instituição tornar-se um contraponto “negativo” à ordem do capitalismo tardio. A oportunidade de finalmente libertar o gênero humano da irracionalidade da autoridade ao instituir relações humanas baseadas no amor, opondo-se à frieza e superficialidade das relações de consumo e da fugidia “empregabilidade” das relações profissionais.
A família como um abrigo seguro em uma terra desalmada.
2 comentários:
Diógenes,
vc não citou o autor do artigo. Seria Wilson Roberto Vieira Ferreira? Pois o colega, que é jornalista, e professor universitário, avança de forma competente, num artigo bem estruturado, muito bem redigido, mas furtou-se de analisar as prováveis causas, além do tal "capitalismo tardio", na questão da ausência da autoridade familiar do mundo moderno.
Em minha modesta opinião, que não sou especialista em semiótica e outras teorias conspiratórias, a "culpa" dessa rejeição pela família é de Freud e seus seguidores, pois, na opinião deles, a mãe, na maioria das vezes, ou o pai, por vezes, são os culpados de tudo o que de ruim acontece na vida de quem anda por aí, dando tropeçadas pela vida. É daí que surge a expressão, cunhada pelo povo, de que "para ser psiquiatra ou psicólogo, o sujeito tem que ser muito doido e carente", e toca a procurar os culpados por sua inadaptação à vida.
Tomemos um exemplo citado, das produções Disney, seja em Patópolis ou na floresta: há pais nessas histórias, sim, como o Lobo Mau, uma criatura perversa e malvada, pai do Lobinho, uma santa criatura; há ainda o o Banzé, se não estou enganado, que tinha pai e mãe (Lady), politicamente corretos, e ainda o veadinho Bambi, cuja mãe é assassinada logo na primeira história, e ele se torna um torcedor tricolor...
OK, as histórias do Disney (que diziam ser um homossexual desenfreado, mas não assumido), com a quase total ausência da autoridade da família, talvez se expliquem, pela psiquiatria, com suas neuroses cinematográficas e de histórias em quadrinhos, não são o foco do artigo, são apenas um exemplo, mas afastam a teoria do capitalismo tardio. Este, inegavelmente, não está nem aí para a origem da grana que deseja bater da carteira dos consumidores, sejam eles de qualquer etnia, credo ou opção política e sexual. O capitalismo, tardio, ou neoliberal, é amorfo e não interfere nas intimidades e sutilezas humanas.
Vamos culpar o Freud? Ele analisou, explicou as neuroses, e ajudou a piorar ainda mais o que já era ruim, o ser humano inadaptado. Talvez seja isso que permite aos geógrafos e sociólogos projetar, para dentro de 30 anos, a redução drástica do crescimento demográfico, o que seria, enfim, a salvação do planeta.
Cumpadi Richard,
Boa observação. Ocorre que, ainda que eu também não seja especialista em semiótica ou mesmo em psicologia, posso afirmar que o tal "capitalismo tardio" é a metamorfose de um capitalismo selvagem dos primeiros momentos e traz, sim, em suas entranhas esse desprezo pelas "intimidades e sutilezas humanas". Quanto à Freud, não creio que ela seja o culpado, talvez, um fator dentre outros fatores para o estado de coisas que afetam a família hoje.
De fato, esqueci de citar o autor. Mas já está devidamente corrigida essa falta gravíssima. Abs, cumpadi!
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