Senzala - Debret |
Depois da votação unânime do Supremo Tribunal Federal ontem a favor das cotas raciais nas universidades, fiquei pensando em como o racismo está impregnado fundo na sociedade brasileira. E este racismo se combina com um elitismo que parece até atávico em certas pessoas.
Os argumentos dos que são contrários as cotas raciais nas
universidades lembram falas de vários tempos passados em momentos que se
discutiam – e aprovavam – normas que beneficiavam grupos sociais
excluídos. Algumas delas foram bem lembradas pelo jornalista Elio
Gaspari, em coluna publicada na FSP de 25/04 e republicadas no portal Viomundo:
Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. “Lei de Herodes”, segundo o romancista José de Alencar.Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça.Como dizia o Visconde de Sinimbu: “A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo”. A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo “Boi”, um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.As cotas seriam coisa para inglês ver, “lumpenescas propostas de reserva de mercado”. Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos da universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, “brincam com fogo os tais negrófilos”. Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.
Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.
Acrescento ainda, de minha parte: quando foram legalizadas as férias
trabalhistas, houve quem dissesse que os trabalhadores iriam se perder
na bebida e na vadiagem; que a aprovação do salário família iria
estimular os pobres a terem filhos em demasia e ainda sobre as cotas
raciais, que alunos negros tendo um desempenho inferior nos exames
vestibulares por conta da sua formação deficiente no ensino médio não
conseguiriam acompanhar o nível superior.
Infelizmente para quem pensa assim, a realidade foi para o outro
lado. Principalmente porque tais argumentos estão muito mais fundados em
sentimentos de racismo, de preconceito contra as classes
subalternizadas, de elitismo do que em fatos.
Não conheço nenhum estudo que tenha comprovado uma correspondência
direta entre desempenhos no vestibular e na vida acadêmica (por exemplo,
se os que passaram em primeiro lugar nos vestibulares são, de fato, os
melhores alunos na universidade). E nem tampouco se estes desempenhos –
no vestibular e na vida acadêmica – se reverberam em qualidade
profissional (será que os primeiros colocados na Fuvest viraram os
melhores alunos dos cursos da USP e, daí, os profissionais mais
gabaritados nas suas áreas?).
O que tem incomodado nas cotas é que elas se transformaram na primeira política pública efetiva de garantia de oportunidades para afrodescendentes e
demonstram o reconhecimento oficial e prático (e não apenas retórico)
da existência do racismo no Brasil. Por isto que, de repente, apareceu
um monte de gente dizendo que “não existem raças”, “somos todos seres
humanos”, “negro e branco é igual, são filhos de Deus” (sic); uma
retórica vazia que tenta encobrir a realidade com um desejo moral (se é
que, de fato, este desejo existe na cabeça de várias pessoas que afirmam
isto).
Finalmente, há aqueles que, de repente, viraram os grandes defensores
da “melhoria do ensino público” como forma de reduzir as desigualdades.
Estranho este argumento crescer de repente pois lembro-me da polêmica
que parcela significativa da sociedade, com apoio da mídia, realizou
quando a ex-prefeita Marta Suplicy construiu os CEUs (Centros de
Educação Unificados) nas periferias argumentando que eram “muito caros”,
“exagerados” e vai por aí afora.
No fundo, o que incomoda é a democratização do acesso às ilhas de
privilégios construídos pelas elites – entre as quais as universidades
públicas. O racismo e o preconceito são os principais mecanismos
ideológicos que legitimam na sociedade brasileira este pensamento
elitista.
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