A Constituição garante foro privilegiado para uma infinidade de autoridades brasileiras a pretexto de evitar condenações injustas. Na prática, porém, o privilégio tornou-se um obstáculo praticamente intransponível à condenação dos corruptos de alto escalão
Por Túlio Vianna
A origem etimológica da palavra “privilégio” é bastante sugestiva. No latim, o adjetivo privus designava a esfera privada em oposição ao publicus, enquanto legis era o genitivo singular de lex: lei. Privilegium,
em bom português é, portanto, uma lei privada; um verdadeiro estado de
exceção particular, que torna o “privilegiado” alguém privado da lei ou,
mais precisamente, dos rigores dela.
O foro privilegiado tradicionalmente se justificava pelos títulos de
nobreza do beneficiado. Se a premissa é que nobres e povo são
diferentes, não haveria sentido que o mesmo juiz que julgasse um popular
também pudesse julgar um barão. Na república, porém, onde todos são
iguais perante a lei, a própria ideia de um foro privilegiado já se
mostraria incoerente, daí porque se criou o eufemismo com o qual muitos
juristas e políticos procuram legitimar a existência de um foro
privilegiado até hoje: a “prerrogativa de função”.
A prerrogativa de função é essencialmente um foro privilegiado que se
justifica não mais no azulado do sangue ou em um título vitalício de
nobreza, mas no estado transitório de alguém do povo que ocupa um cargo
azul da república. O privilégio vitalício se torna transitório e
vinculado ao exercício de um cargo importante. Sua justificativa não é
mais o fato de algumas pessoas serem melhores que outras, mas de alguns
cargos públicos, por questões estratégicas, necessitarem de uma
blindagem especial para evitar o uso político do processo penal.
A lista de privilegiados elencada na Constituição brasileira é
possivelmente a maior do mundo. Em muitos países, o presidente da
República e os chefes dos demais Poderes são beneficiados com a
prerrogativa de função, tendo em vista a enorme visibilidade do cargo.
Somente no Brasil, porém, autoridades tão diversas quanto governadores,
deputados, senadores, ministros, membros dos Tribunais de Contas,
comandantes das forças armadas e – pasmem – até mesmo prefeitos e
deputados estaduais têm foro privilegiado.
Alegam os defensores da prerrogativa de função que autoridades do
alto escalão precisam ser julgadas por juízes experientes, que estariam
menos sujeitos a pressões externas. Na prática, entretanto, essa
premissa se mostra completamente falsa, pois o processo penal brasileiro
garante a todos os réus condenados a possibilidade de recorrerem para
os Tribunais de Justiça e, posteriormente, para os Tribunais Superiores,
para que possam ter seus casos reexaminados por juízes mais
experientes. Ainda que não houvesse o foro privilegiado, a palavra final
sobre a condenação ou absolvição dessas autoridades seria mesmo do
Supremo Tribunal Federal (STF), pois esse tipo de réu é sempre assistido
por ótimos advogados, que não têm maiores dificuldades em levar a
questão a julgamento pelo STF, até pela repercussão política dos fatos.
A discussão sobre o foro privilegiado não é uma discussão sobre quem
irá julgar o réu definitivamente, mas sim sobre quem irá presidir a fase
de coleta de provas. Em qualquer processo, o juiz leva meses e até anos
ouvindo partes, testemunhas, determinando a elaboração de provas
periciais e coletando todas as demais provas necessárias para o
esclarecimento do fato. Esta fase, chamada de instrução probatória, é
indiscutivelmente a mais demorada do processo. Finda a instrução, cabe
ao juiz estudar as provas produzidas e julgar o caso. A fase do
julgamento, em si, é relativamente rápida, pois só depende da
disponibilidade de tempo do magistrado para examinar as provas e redigir
sua decisão.
Quando há recursos, o tribunal não refaz a fase da coleta de provas,
mas tão somente examina as provas produzidas e julga se a decisão do
juiz foi acertada ou não. E é justamente por não ter participado da
produção das provas que os magistrados do tribunal, em princípio, estão
mais distanciados emocionalmente dos fatos e têm condições de decidir
com maior imparcialidade. Daí a enorme importância do princípio do duplo
grau de jurisdição, que garante ao acusado a possibilidade de recorrer
de sua condenação para um tribunal que não participou da fase da coleta
de provas e de ter seu caso julgado ao menos duas vezes.
Do ponto de vista estritamente jurídico, o foro privilegiado seria
uma enorme desvantagem para o acusado, pois se no julgamento pelo juiz
de primeira instância ele sempre poderá recorrer para ter decisões mais
favoráveis em outros tribunais, no julgamento com foro privilegiado,
muitas vezes a decisão é definitiva, já que, quando a competência é do
STF, não há um órgão superior para o qual se possa recorrer.
Na prática, porém, o foro privilegiado é sinônimo de blindagem e de
impunidade, pois a morosidade na coleta de provas torna inviável
qualquer condenação. Em 2007, a Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) realizou a pesquisa “Juízes contra a Corrupção” e constatou que
das 130 ações penais que tramitaram no STF, por conta do foro
privilegiado, entre 1988 e 2007, nenhuma resultou em condenação. Das 483
que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ), houve condenação
em apenas cinco casos.
O foro privilegiado propicia a impunidade, pois coloca os tribunais
para trabalhar justamente na parte mais demorada do processo, isto é, na
coleta de provas. Tribunais são órgãos do Judiciário concebidos para
examinar recursos em processos nos quais as provas já foram colhidas e
não dispõem da infraestrutura e de funcionários treinados para coletar
provas em tempo hábil para o julgamento, o que acaba resultando na
prescrição ou em uma deficiente coleta de provas.
A função declarada do foro privilegiado é garantir um julgamento
justo por um juiz mais experiente, mas, na prática, sua função manifesta
é garantir uma blindagem das autoridades de alto escalão por meio de um
procedimento tão burocrático e inviável que resultará quase
inevitavelmente em extinção da punibilidade por prescrição ou absolvição
por falta de provas. O senso comum forense sabe muito bem que casos de
tamanha gravidade acabarão sempre sendo julgados em definitivo pelo STF,
para onde os advogados dos acusados irão inevitavelmente recorrer. A
diferença é que a instrução probatória seria muito mais ágil se as
provas fossem colhidas em primeira instância.
Alegam os defensores do foro privilegiado que, mesmo que as
condenações de primeira instância não sejam definitivas, seriam por si
só suficientes para macular a imagem honrada dessas autoridades,
colocando em risco suas carreiras públicas, no que, de fato, têm toda
razão. Juízes muitas vezes erram, e julgamentos precipitados
infelizmente podem destruir carreiras e, consequentemente, vidas.
É preciso lembrar, no entanto, que pedreiros, faxineiros e lavradores
são condenados injustamente todos os dias, perdem seus empregos e seus
amigos por conta do estigma que lhes é atribuído e também têm suas vidas
destruídas. O foro privilegiado não soluciona os erros do Judiciário,
apenas impede que algumas autoridades estejam sujeitas a eles, não
porque isso possa causar alguma instabilidade política, mas porque essas
autoridades são consideradas como uma espécie de nobreza além do bem e
do mal. Em uma república digna do nome, ministros, senadores ou
governadores também estarão sujeitos aos mesmos erros dos mesmos juízes
que, com seus equívocos, destroem a vida de cidadãos comuns do povo. A
tutela de reputações individuais não é suficiente para legitimar a
existência de um foro privilegiado.
Em casos particularmente específicos, como por exemplo, o cargo de
presidente da República, uma condenação criminal contra o chefe do Poder
Executivo poderia gerar uma instabilidade política de repercussões
gigantescas para o País. Por conta desta tutela da ordem política
nacional (e não da honra do indivíduo que exerce o cargo de presidente),
justifica-se a existência de um foro privilegiado. Nos casos de
condenações de prefeitos, governadores, ministros, senadores e
deputados, só para citar alguns cargos, haveria, contudo, muito pouco ou
mesmo nenhum abalo da ordem política nacional. A prática tem
demonstrado que, em casos como esse, os acusados são afastados de seus
cargos muito antes de um julgamento definitivo, que, quando ocorre,
muitas vezes desperta pouco interesse da grande mídia.
A prerrogativa de função em uma república só pode e deve existir para
garantir a ordem política do Estado, e nunca para melhor garantir a
reputação dos titulares desses cargos. Do contrário, estar-se-ia
retomando o velho modelo do juiz comum para julgar o povo e do juiz
extremamente qualificado para julgar os barões, partindo da falácia de
que a honra de um cidadão do povo tem menor valor que a honra de um
nobre.
Para tentar sanar essa excrescência jurídica completamente
incompatível com os ideais republicanos, tramita no Senado a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) nº 81/2007, de autoria do senador Gerson
Camata (PMDB-ES), que está aguardando designação de relator na Comissão
de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) desde 14 de janeiro de 2011,
em uma demonstração explícita de falta de interesse político de se votar
a matéria. Diante da letargia do Senado, o deputado federal Rubens
Bueno (PPS-PR) propôs este ano a PEC nº 142/2012, com o mesmo objetivo,
de pôr fim ao foro privilegiado. Se não houver, porém, uma efetiva
mobilização popular em torno do tema, dificilmente será votada e
aprovada, pois não é crível que deputados e senadores cortem seus
próprios privilégios de forma espontânea.
A construção da república no Brasil ainda é uma tarefa inacabada.
Nossa cultura aristocrática está por todas as partes, desde as placas
pretas dos carros de luxo até os títulos de doutor usados como pronome
de tratamento. E está também no foro privilegiado. É lamentável que os
atuais “barões”, “condes” e “duques”, eleitos pelo voto popular ou
indicados pelo presidente da República, insistam em se apropriar da res
publica e defender seus privilégios como garantias necessárias para o
exercício do cargo. O povo, porém, não pode nem deve aguardar
passivamente o dia em que essa nobreza irá abdicar por conta própria de
seus privilégios, pois o mais provável é que esse dia nunca chegue.
Os princípios republicanos não foram um presente concedido pelos
nobres aos plebeus. Foram conquistas. E é preciso conquistar também o
fim do privilégio de foro, pois a principal causa da impunidade dos
corruptos de alto escalão é esta blindagem que hoje lhes é concedida.
Somente quando ministros e lavradores forem julgados pelos mesmos juízes
poderemos começar a construir uma república digna do nome.
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