Grupos feministas denunciam assédios e violência presentes na sociedade egípcia
As mulheres representam metade da população do Egito e cerca de um
terço delas são as chefes de família em suas residências. No entanto,
40% ainda são analfabetas e apenas 16% têm um emprego de tempo integral.
Os dados impressionam por si só, mas o cenário do dia a dia da mulher
egípcia pode ser ainda mais desolador.
Uma estudante de direito que preferiu não ser identificada contou que
já vivenciou assédios de taxistas e até colegas da universidade. “Eu vi
que não tinha mais como continuar calada e resolvi agir”, afirma. A
estudante trabalha agora como voluntária para o site harassmap.org, que
vem desde dezembro construindo um mapa com as denúncias recebidas e
encaminhando as mulheres a apoio especializado. Já são 23 grupos de
apoio à mulher no país e, somente nesta página web, há 300 voluntários.
Há um mês, a estudante inglesa Natasha Smith publicou no seu blog um relato de cinco páginas onde descreveu com detalhes como foi “abusada por centenas de homens, tocando-me, com força e de maneira agressiva”. Nastaha teve suas roupas rasgadas no centro da capital egípcia e terminou nua, em uma das tendas dos acampados que exigem reformas políticas. “Eles tocavam meus seios e forçavam seus dedos contra o meu corpo, de várias maneiras. Eu gritava Alá, Alá, de maneira desesperada, mas de nada adiantou”. A estudante de jornalismo contou com a ajuda de um grupo de homens para sair da cena do abuso. Ao mesmo tempo, algumas mulheres gritavam dizendo que o que havia acontecido não representava o Egito nem o Islã.
O fato de ter sido confundida com uma espiã foi a desculpa para atacar
Nastaha, levando a crer que este foi um caso isolado. No entanto, a
rotina das milhões de egípcias prova o contrário. Segundo um estudo do
ECWR (Centro Egípcio para Direitos das Mulheres, na sigla em inglês),
83% das mulheres egípcias admitem ter sido vítimas de abuso sexual pelo
menos uma vez na vida. Mais surpreendente é comprovar que 62% dos homens
confessam já ter participado de algum ato de abuso e 53% dizem que as
mulheres deveriam usar roupas mais discretas para evitar esta situação.
No início de junho, uma passeata para conscientizar a população a
respeito da violência sofrida por mulheres foi atacada por grupos de
homens que apareceram de surpresa no ato e abusaram de algumas
participantes.
Um mês depois, ativistas fizeram uma cadeia humana no bairro de Nasr
City, a 10km do centro do Cairo, contra os abusos sexuais tão frequentes
no país. Cartazes com frases como “Defenderei o direito de que qualquer
mulher ande em paz” e “Quando uma mulher sofre um abuso, ela não
desfruta” foram erguidas pelos militantes do grupo Nefsi (“Eu tenho
esperança”), que organizou o evento.
Na mesma semana, foi a vez da praça Tahrir testemunhar um protesto
contra os abusos sexuais. Como vem ocorrendo religiosamente todas as
sextas-feiras desde a revolução de janeiro de 2011, a praça virou a voz
dos egípcios. Mas desta vez, os números não foram registrados em
milhares, nem mesmo em centenas. E o ato não teve motivação política. As
mulheres foram as protagonistas e tentaram chamar a atenção dos
cidadãos e das autoridades para o aumento de casos (ou pelo menos de
denúncias) de abusos sexuais no Egito.
O ato contou com a colaboração de um grupo de homens lutadores de artes
marciais que fizeram um cordão de isolamento para proteger as mulheres
que saíram para protestar.
Ironicamente, a participação das mulheres na revolução egípcia vem
sendo amplamente comentada pela mídia interna e pelos jornalistas
estrangeiros, geralmente mostrando que sem elas, os protestos teriam
sido um fracasso. Mulheres com e sem véu, com e sem maridos, com e sem
crianças, uniram-se à multidão que forçou a renúncia de Hosni Mubarak.
Nas eleições parlamentares de novembro de 2011, dos 508 deputados,
apenas oito dos eleitos eram mulheres. A participação feminina na
construção do Egito pós-revolução parece estar longe de fazer jus à
importância das mulheres em todo o processo.
A vitória do candidato islamista Mohammed Mursi, alinhado com o
movimento Irmandade Muçulmana, preocupa os setores que lutam pelos
direitos das mulheres e levanta dúvidas a respeito dos avanços já
feitos. A criminalização da mutilação genital feminina não é apoiada
pelos membros do PLJ (Partido Liberdade e Justiça), braço político da
Irmandade, e há inclusive discussões recentes para que a lei que permite
que a mulher peça o divórcio seja alterada, visão compartilhada até
mesmo por mulheres do PLJ. Mursi prometeu indicar uma mulher como uma
das vice-presidentes, mas o medo de um avanço conservador é real.
Mulheres protestam contra abusos cometidos no Egito. [Berta Meerman] |
Na última semana, um canal de televisão dirigido somente por mulheres com niqab (véu que cobre todo o rosto) foi lançado no Egito. Durante a era Mubarak, conseguir trabalho era uma tarefa quase impossível para mulheres com o niqab. E na televisão, até mesmo o véu que cobre apenas o cabelo era una raridade. Se por um lado a novidade parece positiva por incluir estas mulheres no mercado de trabalho, por outro é vista com receio por representar um claro avanço dos grupos islamistas na sociedade e na política do Egito.
Mozn Hassan, da ONG Estudos Feministas Nazra, diz que não acha que as
mulheres vão perder muito no novo governo, mas teme que elas também não
vão ganhar. "A batalha vai ser de todos os conservadores contra a nossa
luta de anos pela igualdade de direitos”, afirma Hassan.
Sobre os recentes casos de abuso em Tahrir, algumas ativistas afirmam
que os ataques são organizados pela junta militar para manter as
mulheres longe das manifestações. Outras ativistas põem a culpa no Islã.
E há algumas que afirmam que a prática da religião é a melhor maneira
para evitar os abusos.
“Queremos pegar estes criminosos que estão destruindo a reputação da
revolução. Queremos expô-los e deixá-los com vergonha. Queremos
justiça”, dizia uma das frases que convocava o evento no Facebook.
“Queremos dizer ‘Não, basta’ aos abusos que estão acontecendo em Tahrir.
Temos que acabar com isso e provar que as pessoas em Tahrir são as mais
nobres do mundo”.
A história da jovem Natasha foi seguida pela história de Waliha. E de
Fatma, Omneya, Leila, Samira e de tantas outras mulheres que vivem o
drama silencioso dos abusos e agressões. “As pessoas não têm ideia da
dimensão do tema e de quão sério é este assunto. Não é uma noticia para
ser lida e esquecida rapidamente. Esta é uma tendência no mundo inteiro e
precisa ser interrompida. Mulheres árabes, mulheres ocidentais – são
muitas pessoas sofrendo. Não somos vítimas porque não deixaremos que
estas experiências arruínem nossas vidas”, conclui a estudante
britânica.
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